Breves nótulas sobre uma verborreia insone #6

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(palavras incoerentes escritas a cor azul no verso de uma folha em branco)

“Não existe verdadeiramente pintura abstracta; qualquer pintor parte limitado à partida pelas quatro linhas da tela” – dizem que tinha jeito para aforismos e para respostas espirituosas; dizem que punha os nervos em franja aos críticos de arte e mesmo a outros artistas que tentavam acompanhar o evoluir constante das tendências artísticas da época, tudo porque mudava de estilo e criava novos como quem muda de camisa, e mesmo assim talvez não mudasse tantas vezes de camisa; dizem que pintou algumas das mais geniais obras do século passado, em várias fases, muitas delas caracterizadas apenas pela predominância do uso de uma cor (não seria uma questão mera mente financeira, ia comprando as cores à medida que tinha dinheiro para elas?); dizem muita coisa acerca do homem. Eu só sei que ele disse uma coisa assim parecida com esta frase que aqui está. Ele, o Picasso, claro. (Acho que foi ele. Se não foi, azar, siga!)
Esta frase, de qualquer modo, leva-nos a vários pontos de interrogação, sendo que, como é óbvio e usual, não se responderá a nenhum, primeiro, porque não há capacidade; segundo, porque há demasiado sono.
Adiante, como disse, esta visão de Picasso leva-nos a colocar algumas questões, questões essas a que o próprio decerto gostaria de dar resposta, mas parece que não pode neste momento que está ocupado a desfazer-se em pó, se ainda não o está já! Vamos lá então, por ordem de profundeza de espírito das mesmas…
1) Picasso admite que não há pintura abstracta. No entanto, não se refere a mais nenhum tipo de arte. Pelo que: ou a pintura é um exemplo e toda a arte obedece a esta proposição; ou a pintura é uma excepção e a restante arte pode ser abstracta. Esta hipótese talvez fosse à partida a mais verosímil, visto que a pintura parece ser a única forma de arte com telas… por outro lado, o teatro e o bailado têm palcos, o cinema a tela da projecção, a música um certo número de notas, a fotografia… hmmm…
2) Se o pintor está limitado pelas quatro linhas da tela, então Picasso:
a) usou as telas quadriláteras como modelo para pintura, embora pressupondo que possa haver outras formas geométricas onde pintar;
b) esqueceu-se completamente disso, ainda para mais não havia então o graffiti como acontece hoje, nas paredes, nas carruagens, num sem número de telas ocasionais (sim, o graffiti é uma arte por si mesma, fazê-lo em locais que são interditos por lei é que se torna vandalismo)
3) Se se considerar a arte como uma forma de ver o mundo, e considerando a pintura como um exemplo de toda a arte, então Picasso considerava que o mundo não tinha abstracção pura? Ou seja, é impossível ao mundo existir sem ter certos cânones onde se possa encaixar, negando assim um Caos absoluto? Quase tão importante como isso, fazendo a transposição entre arte e mundo, então o mundo, na visão de Picasso, é também delimitado por quatro linhas, sendo portanto quadrilátero? (Ouvi dizer também que uns tipos provaram há uns séculos que afinal é esférico) E, nesse caso, visto que temos noção de três dimensões, não seria, isso sim, cúbico? Partindo do pressuposto que a resposta às últimas duas questões é Sim, mas Picasso era doido, ou quê?
4) Será que Picasso, tal como fizemos aqui nós, considerava, de facto, a arte como uma forma de ver o mundo, ou como um seu reflexo, ou considerava-a como uma coisa subsistente de per si? Considerando como correcta uma das primeiras duas opções, estaria a falar de um mundo-universo, ou do mundo-humano, isto é, de todas as coisas que existem, ou apenas da humanidade no meio desse todo?
5) Concluindo, considerando todas estas considerações, não deveremos nós considerar que os limites da tela, que os limites da arte, seja ela qual for, que os limites do mundo, que todos e quaisquer limites são apenas os limites inexoráveis da mente humana? E, assim, não variarão o mundo, a arte, a tela, de tamanho conforme os limites de cada um? Porque cada indivíduo humano desenha na tela em branco dos dias a obra-prima da sua vida, em pinceladas comandadas por aquilo que ele é no pensamento e na alma, porque, parafraseando Pessoa, não somos da nossa altura, mas sim do tamanho de tudo aquilo que conseguimos ver, e cada um de nós vê aquilo para que está preparado, e/ou para que se quer preparar.

FIM
(e mais um par de botas)