O homem que bebe pela manhã...

Não é tarefa árdua encontrar madrugadores hominídeos nos cafés, nos tascos, nos snack-bars que se encontram esquina sim, esquina sim, emborcando logo pelas horas das matinas doses generosas de bebidas alcoólicas, complementando pequenos-almoços frugais, muitas vezes substituindo-os por inteiro. Cervejas, simples ou misturadas com martinis, o referido vermute a solo, também, bagaços, macieiras e outros licores para assentar o café no estômago, e mais uma ampolazinha de cevada e lúpulo fermentados para atestar com esses 33 cl. a 5,qualquer coisa porcento de volume alcoólico, já para não falar no mais tasqueiro vinho carrascão, servido em copos rançosos das más lavagens consecutivas, ou das mais domésticas sopas de vinho para dar força para todo o dia.
Bebem, normalmente, em silêncio, essas pessoas, quase sempre homens, quase sempre de rostos desfigurados pelos dias árduos de trabalho seguidos de noites mal descansadas em aflições do dia de amanhã, quase sempre escondidos atrás de máscaras em forma de barbas por cortar, sinal inequívoco de desistência física, quase sempre de ombros caídos e braços sem vontade de terem força para aguentar as horas que ainda estão por contar.
Bebem, e os que os olham lançam-lhes muitas vezes epítetos de Ah, valente!, ou Bêbedo miserável!, conforme depreendam que aqueles corpos desgastados vão a caminho de mais uma jornada de labuta ou de mais uma espiral de embriagamento. Bebem, e os que os olham vêm-nos como uma espécie de heróis anónimos ou vilões sem malvadez, como se houvesse apenas super ou infra-homens entre aqueles que ingurgitam em disparos ávidos os seus copázios de soluções inebriantes, como se todos esses seres encostados aos balcões a cheirar a sonasol verde ou produtos de aromas amoniacais fossem dotados de uma coragem de serem corajosos ou de serem vis.
Bebem... continuam bebendo... quando os vejo, resignados, sem perspectivas que não o fundo do copo, afogados naqueles líquidos ácidos, não vejo super-homens nem super-vilões, não vejo seres bravos de coragem extrema em serem temerários ou desprezíveis, não vejo mais que homens inconscientemente conscientes da sua inaptidão para outra coisa que não a vida reles de serem humanos, homens que sem se darem conta perceberam o vazio da existência sem a inteligência para a compreenderem, da futilidade de mais um dia após mais um dia antes de mais um dia, na sucessão exógena das datas nos calendários, porque a situação humana é um nó podre que não tem jeito de se desatar.
Bebem... continuam bebendo... bebem ainda mais um copo... e eu vejo-os bebendo amargamente para conseguirem uma falsa sensação de coragem ébria de modo a enfrentar mais duas voltas do ponteiro pequeno. O acto ligeiro de levar o copo à boca não é de todo ligeiro, carrega nele, dentro daquele pedaço de vidro embaciado, o peso de um mundo que passou e que ainda vai passar, o fardo de se ser humano à deriva numa espécie de universo, coisa incompreensível e irremediável, uma força extrínseca que se desenrola em derivas oceânicas de sensações, sem tábua a que se agarre que não mais um copito para a viagem...
Acabam de beber, pagam, pegam no guarda-chuva e saem para enfrentar de olhos vidrados mais um dia frio e enevoado como outro qualquer...
À vossa!

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