Pequenas diferenças entre o ser humano e a restante fauna...

A Comunicação

O ser humano advoga-se genericamente a capacidade única entre todos os animais da terra de conseguir comunicar. Genericamente, pois claro, entendendo comunicação num sentido bem definido de fala, e não no sentido lato de transmissão de informação.
Vamos por partes. Comecemos pela dita transmissão de informação pura. A forma mais básica de comunicar. Para não dizer todos os seres vivos, direi que grande parte deles comunica, de alguma forma, com os da mesma espécie a que pertencem, e inclusive com elementos de outras.
Quando um gato mia em pleno cio está a anunciar a todas as fêmeas dentro do seu território que está com vontade de procriar; quando um elefante levanta a sua tromba e emite aqueles urros tremendos, está a chamar a manada, ou a marcar posição. Isso é comunicação sonora, mas da mesma forma existe a comunicação visual, como as plumagens de pavões pomposos de pedantismo (bela aliteração, não?) que têm o mesmo efeito do miar luxurioso dos felinos de trazer por casa. Ou então a comunicação olfactiva, como os odores deixados pela maioria dos animais terrestres como marcação territorial... E até mesmo mistos, como aqueles animais que dão coices e marradas em árvores e ainda mijam em cima, portanto, toda uma panóplia de informação ao dispor de todos os que por ali passem. E depois existe ainda a comunicação com os das outras espécies... as cores berrantes, fluorescentes, de certos animais, como rãs e outros anfíbios, de cobras, de alguns insectos, avisando todos os possíveis predadores das cargas venenosas que possuem a correr nos seus corpos e que são passíveis de criar incómodas sensações em seus estômagos delicados; o abanar da cauda pelas cascavéis, ou o capelo das najas, como quem diz: Ora tenta lá chegar-te aqui que eu já te conto!. Mas até as plantas comunicam com os animais, com as suas flores, uma espécie de marketing da reprodução, uma oferta publicitária de pólen com vista à propagação da espécie.
Tudo isto não deixa de ser comunicação, a um nível primário, instintivo, tendo como objecto e objectivo questões essenciais da sobrevivência individual ou da espécie, mas ainda assim comunicação. Aí se verifica a pequena grande diferença do ser humano, na qualidade da comunicação.
O Homem comunica com intenção de comunicar, não apenas por instinto. Ele comunica porque quer, quando quer, por vezes em subliminares termos difíceis de apreender por todos. Não se limita às marcações de território, lutas pelas fêmeas e avisos aos predadores. Ele desenvolveu uma forma de comunicar altamente elaborada, de tal forma que dentro da própria espécie se torna incompreensível, pois os símbolos não são iguais para todos. O homo sapiens sapiens é provavelmente a única espécie que desenvolveu uma babel de falas retalhadas pelo mapa do mundo em divisórias acidentais de geografia. Uma rã laranja é sinal de veneno na América do Sul, e/ou também na Malásia; nein na Inglaterra é nove, mas na Alemanha é não, e a separar estes países está bem menos que um oceano Pacífico...
Da mesma forma, o Homem desenvolveu técnicas de comunicação cada vez mais complexas ao longo dos seus escassos anos de vida. Dos gestos, óbvia primeira forma de se fazer compreender, para a fala, que terá começado em grunhidos acompanhados desse mesmo gesticular, depois a arte (que é obviamente uma forma de comunicação) nas suas múltiplas vertentes: inicialmente a pintura, a música e a dança, por serem as mais acessíveis quando as tecnologias eram rudimentos de sobrevivência, logo seguidas da escultura. Aquando do advento das grandes civilizações, surgiram a arquitectura e uma outra forma de comunicar: a escrita. Curioso que o Homem tenha criado a arte antes ainda de ter criado o suporte físico da sua fala. Claro que há razões práticas para ser assim, pois a escrita surgiu de uma necessidade quotidiana, mas não deixo de achar uma ideia romântica e fabulosa que a humanidade tenha primeiro abordado o mundo em termos de subjectividade e imaginação e só depois em termos objectivos e de contabilidade fiscal! Ao longo dos milénios, a arte encontrou outros suportes, como o teatro/encenação, a fotografia, o cinema, enquanto o Homem procurava novas tecnologias para comunicar cada vez mais e melhor com mais e mais pessoas, no menor tempo possível, tentando até comunicar com o metafísico. Não vale a pena estar a enumerar fastidiosamente essas novidades que foram surgindo, pois o que interessa é a ideia da procura de comunicar mais e melhor, a ideia de um alastramento da comunicação a um nível global.
Hoje em dia, falámos de um mundo unido pela difusão de valores, de um mundo globalizado. O Homem partilha a mesma língua em toda a parte? Não! O Homem partilha crenças políticas ou religiosas? Não! O Homem partilha a prosperidade? Não! Mas mesmo assim toda a gente em toda a parte do mundo pode saber o que se passa nos seus antípodas, pois a comunicação é coisa fácil. Cada vez mais fácil, e cada vez mais instantânea.
Voltemos ao particular, ao que podemos observar no dia-a-dia. Hoje, os homens comunicam, curiosamente, da mesma forma que certos animais, isto é, conseguem por processos similares transmitir ideias, que podem não ser exactamente as mesmas, mas não deixam de andar lá perto: através das suas pelagens, as formas e cores das suas roupas, indicam o grupo social com que se identificam, ao mesmo tempo que excluem os outros que a ele não pertencem; através da forma como pavoneiam e enfeitam com atavios de prosápia estilística seus corpos, tentam ganhar vantagem no grande processo da reprodução (no fundo, a moda tornou-se uma forma de comunicar); tentam até falar com outras espécies, convencendo-as ao som de beethovens e bachs a procriar mais e mais depressa. Concluindo, após tão largo processo evolutivo, o Homem voltou a dizer exactamente o mesmo que os animais não inteligentes dizem com os seus instintivos rosnares e grasnares...
Mas há uma diferença na comunicação humana que importa referir. Como já dissemos, o Homem não partilha dentro da espécie os mesmos símbolos, o que é uma diferença para os restantes seres vivos. Como referimos também, os objectivos do Homem ao comunicar passam mormente por questões relacionadas com a sobrevivência, embora não apenas a um nível estrito, isto é, a sobrevivência da vida ou morte, nem sequer a sobrevivência da espécie, mas igualmente a sobrevivência do grupo, da empresa, de uma relação de qualquer espécie entre um número limitado de espécimes. A grandíssima variação consiste na comunicação por comunicação.
Se o objectivo geral da comunicação passou sempre por sobreviver, ou seja, se a comunicação sempre foi uma resposta às necessidades humanas (mesmo a arte pode ser assim considerada, porque não poucas vezes um artista tem necessariamente de comunicar qualquer coisa ao mundo, antes que impluda num segundo fatal), neste momento a comunicação é ou está a tornar-se, ela mesma, uma necessidade, sem mais objectivos; dito de outra forma, cada vez mais se comunica apenas para se comunicar, não com a intenção de que essa mensagem transmitida tenha utilidade. Um exemplo prático: os blogs... Para que servem estes montões de posts a dizer coisas tão essenciais como Hoje estou feliz... ou Gosto muito de ver os Morangos porque...? Em termos de sobrevivência individual: nada! Sobrevivência da espécie: nada! Sobrevivência de relações interpessoais: nada! Servem apenas para comunicar, comunicar, comunicar... Tudo e mais alguma coisa. Por que razão surgiu esta tendência? Talvez por o mundo global oferecer a cada um de nós a possibilidade de gravar em formatos avançados uma impressão digital no grande feixe hertziano das transmissões dos pensamentos humanos, porque o mundo actual deseja arduamente que todos digam qualquer coisa em formatos de redes globais de informação, que todos exprimam as suas ideias, de preferência copiadas de manuais subliminares do quotidiano, para assim se esquecerem de pensar dentro de si sobre as coisas importantes, verdadeiramente importantes, e comuniquem subsequentemente as suas conclusões em forma de revoluções!

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