Quem vê caras escusa de ver nomes

As verdadeiras vantagens da memória fotográfica estão ainda, em larga medida, por enunciar, por catalogar, por abordar dialecticamente, de forma ordenada e categórica. Tentamos dar aqui um contributo, ainda que diminuto perante a enormidade de tal empresa, mas os grandes edifícios são mesmo assim, constroem-se aos poucos, quase sempre passando os limites previstos no orçamento. A nossa ideia consubstancia-se na manipulação do dito popular - Quem vê caras não vê corações! - que encabeça estas humildes linhas.
(Não vamos agora versar uma recém-descoberta particularidade da língua lusa, recente para nós, claro, que tem a ver com as diferenças, ainda que ténues, entre ditados, provérbios, adágios e outros afins, pois, embora muito interessante, a classificação científica da frase manipulada não é pertinente neste caso concreto. Fica, mesmo assim, a nota de referência.)
Voltando ao tema que nos serve de mote para a verborreia, as vantagens da memória fotográfica. Como referimos na nossa expressão inicial, uma delas é a dispensa que produz em relação aos nomes, à necessidade de memorizar todos os nomes. Obviamente, isto tem valor apenas quando se está a tratar de nomes pessoais, de pessoas mesmo, não de nomes de objectos, pelas razões óbvias que ficarão implícitas seguidamente.
(Tentemos abreviar caminho e tornar o texto mais compreensível.)
A capacidade de memorizar caras, expressões pessoais, únicas e intransmissíveis e inimitáveis, situá-las num certo contexto e situação de tempo e espaço, criar uma espécie de curriculum vitae das faces humanas, conhecendo assim de onde vem e para onde poderá ir, é um dom de não pouca importância. Diríamos mesmo que, para conseguir viver numa espécie de misantropismo à ocidental, id est, para conseguirmos viver isolados dentro de uma redoma impalpável no meio da confusão globalizada do mundo dito ocidental, é um dom essencial e imprescindível, uma conditio sine qua non para tal atingir desiderato.
A memória fotográfica que permite criar um arquivo extenso de todas as personagens humanas que cruzaram seus caminhos com o nosso, apenas usando a referência facial e negligenciando a nominal, revela a sua importância em três tipos essenciais de situações que versaremos por ordem crescente de pertinência.
Primeira: quando, tendo memorizado certa cara, a) se torna aprazível recordá-la; b) se torna útil recorrer à sua descrição. Na alínea a), a vantagem da memória fotográfica é puramente pessoal, é uma vantagem que beneficia apenas e só o diálogo do eu com si mesmo, o processo imaginativo da recordação de alguém numa situação diferente. Dito de outra forma, memorizar uma cara, várias caras, serve como uma fonte inesgotável de fantasia. Podemos imaginar aquelas mesmas faces, com o seu corpo ou com outro emprestado pela nossa imaginação, num mundo só nosso, a jogar o jogo do xadrez da efabulação do real. Isto não quer dizer que essas caras sejam os rostos de fantasias libidinosas, apenas que podem ser as faces dos povos que habitam os sonhos, poupando muito trabalho ao cérebro. Quanto à alínea b), tem a ver com aquelas situações, pelas quais todos passamos, em que temos necessidade de explicar a alguém de quem queremos falar, recorrendo, então, à descrição mais ou menos pormenorizada, conforme a nossa capacidade de verbalizar imagens, da cara de tal pessoa. Não nos admiraríamos se houvesse muito quem retorquisse a tais proposições, sobretudo a estas últimas, que um nome seria mais fácil não só de decorar e dizer, como também surtiria melhor efeito. No entanto, achamos que assim não é. Primeiro, porque na maioria dos casos nenhum dos interlocutores sabe o nome da pessoa em questão; segundo, porque na maioria dos restantes casos apenas um deles o sabe. Assim, em qualquer uma das situações, o nome de nada adiantaria, ao passo que a visualização da cara, sim. Em relação à alínea a), as vantagens da imagem em relação ao nome são ainda mais duas: por um lado, podemos atribuir nós mesmos o nome que quisermos a tal cara, conformemente aos nossos gostos pessoais, não ficando condicionados pela realidade; por outro lado, poupamos a memória a mais um nome que em nada seria necessário. Até porque nestes casos se tratam, quase sempre, de caras que passam rapidamente na rua, que nos acompanham à distância de alguns lugares nos transportes públicos, que partilham connosco o espaço tabagista de um café, pelo que a mera possibilidade de vir a conhecer, de facto, o nome em causa será remota.
Segunda categoria: quando, tendo memorizado certa cara, é de todo útil essa memória para podermos escapar, em situações futuras, de novos reencontros com tal espécime humanóide. Esta é, claramente, a vantagem mais associada ao princípio misantrópico da vida, à procura da fuga de tudo quanto seja o universo humano. Sobretudo quando se trata de fugir daqueles matraqueadores de palavreado inútil, de redemoinhos de prosa capazes de provocar as mais profundas náuseas físicas. Quantas vezes não sentimos uma fúria imensa em relação a nós mesmos pelo facto de não termos mudado de passeio, ou, pelo menos, não termos tomado uma postura distraída ou pensativa, a tender para o idiota, que seja, de modo a conseguirmos escapar de uma terrível conversa com um desses seres? Quantas vezes não fizemos tudo isso, não recorremos a todos esses subterfúgios para conseguirmos manter a nossa solidão no meio da humanidade toda intacta? Não se pense que esta vantagem é despicienda. Pelo contrário, não fosse a terceira categoria, mais recorrente, logo, mais importante, e seria esta A grande vantagem de conseguir memorizar as caras das outras pessoas. Obviamente, nesta situação facilmente se depreende a reles importância que tem decorar nomes, pois se a ideia é contornar os obstáculos humanos que entremeiam as horas, então de nada importa saber seus nomes.
A terceira categoria: quando, tendo memorizado uma cara, uma dessas de pouca importância, e não tendo conseguido escapar-lhe, nos vemos a dialogar com o seu portador, blá, blá, blá… Não se tem de situar, necessariamente, esta conversa em plena rua, aliás, aí torna-se tudo muito mais fácil para uma fuga oportuna, mas em espaços reduzidos as hipóteses escoam-se, até ao ponto de não haver fuga possível. Pressupondo tal, entramos, então, numa espiral decadente de conversação, quase sempre sobre assuntos assaz impertinentes, não poucas vezes desembocando em conversas sobre o tempo, esse supra-sumo da conversa sem assunto. Os mesmos que questionaram a primeira categoria questionarão, sem dúvida, o valor desta mesma que por ora se versa – Não será, numa conversa mais ou menos longa, inevitável, necessário saber o nome do interlocutor? Não. Não, porque em qualquer conversa deste tipo se pode – e deve! – substituir subtilmente o nome da outra pessoa por pronomes. Afinal, é para isso que eles servem, para irem em vez do nome, ocupando o seu lugar na sintaxe das orações. (Pensamos mesmo que quem inventou os pronomes pessoais o fez tendo em conta não as conjugações verbais e a repetição do uso dos nomes próprios, mas esta coisa de não ligar sequer ao nome das pessoas.) Um tu serve, um você também, conforme o caso peça um ou outro, para manter uma conversa longuíssima, sem que o outro desconfie minimamente de que não sabemos o seu nome (saberá ele o nosso?) Nisso, a língua portuguesa está do nosso lado, auxiliando-nos gramaticalmente, pois por cá se dispensa o uso do nome, ou pronome, sempre que seja preciso repeti-lo uma e outra vez, ainda mais na oralidade, o que já não seria verdade, por exemplo, para a língua inglesa. Basta o verbo, com a sua conjugação de acordo com o número e a pessoa, para implicitamente enunciar o sujeito a quem nos referimos. E, acaso haja um momento em que queiramos usar o seu nome como vocativo ou aposto, também o podemos mascarar com o recurso ao verbo, ou um sonoro e coloquial . Portanto, a conversa decorrerá normalmente. Mas, para os que, passado este tempo todo, ainda não perceberam afinal a necessidade de decorar caras e esquecer os nomes quando estamos em tal situação, perguntamos: não se torna muito mais embaraçoso que uma cara desconhecida nos cumprimente de rompante, sem aviso, num café, tratando-nos pelo nosso nome, enquanto nós ainda pensamos afinal de onde a conhecemos, que sermos apanhados da mesma forma por uma outra cara, essa reconhecida, ainda que continuemos sem saber o seu nome? Porque, no fundo, é disso que se trata, nunca sermos apanhados completamente desprevenidos, munidos do nosso portfolio de caricaturas mentais, sabendo quando e onde certo frontispício entrou para o nosso rol de indesejados.
Quem quiser ver nomes, pois claro que os pode e deve ver, isso vai de cada um. Não mentiremos, afirmando que não sabemos nomes alguns, até porque o que aqui se trata são os casos em que o nome é coisa ínfima, não os casos em que realmente queremos sabê-lo. Mas também não mentiremos de outra forma, afirmando que é sempre importante fixar cara e respectiva nomenclatura, pois tal não é verdade. Quase nunca o é. Preferimos, por isso, guardar a memória para os nomes, e todas as outras coisas, realmente importantes, até porque isso, a memória, é das coisas que mais se vai escoando cada dia que passa…

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