Escrever como quem sente

Ouço muitas vezes da boca de alguns magos da predição que, daqui a mais ou menos tempo, nos países mais ou menos desenvolvidos, a palavra escrita acabará por deixar de ter existência de papel, passando a subsistir somente numa versão digital, que é como quem diz que, passando esse intervalo de tempo não muito bem delimitado por nenhum dessas brilhantes mentes, ninguém mais usará uma caneta, um lápis, uma esferográfica como esta BIC laranja que estou usando neste momento para assentar numa folha de papel em branco, pautado ou quadriculado, com ou sem margens, ou até mesmo num outro suporte qualquer como um tampo de mesa de escola, umas frases quaisquer, nem sequer uma coisa tão trivial e pueril como Eu estive aqui, ass.: X… Dizem esses arautos da tecnologia que o futuro passa apenas pelo sistema QWERT e pelo matraquear de letra a letra até formar uma frase completa, mas sem ninguém estar presente em parte alguma…
ESPERO MORRER ANTES QUE TAL ACONTEÇA!!!
Não concebo viver-me num mundo onde a palavra exista apenas como resultado da conjugação de 0’s e 1’s em processos invisíveis. Não concebo viver-me num mundo onde a palavra não seja despejada em jactos de tinta ou grafite contra a maciez ou a aspereza de uma folha de papel. Não concebo imaginar sequer viver-me num mundo onde a palavra perca a alma. Porque é isso que acontecerá no dia em que apenas haja teclas para bater e as palavras surjam diante dos nossos olhos em ecrãs, a morte da alma da escrita.
Há qualquer coisa de mágico no acto de escrever, mesmo que seja uma parvoíce medonha qualquer, uma coisa mágica e, no entanto, bem visível no seu processo, um encantamento precisamente por se ver como as coisas acontecem, como os músculos do antebraço se movem em pequenos instantes de tensão, como os dedos se movem para cima e para baixo, ligeiramente, conforme a letra suba ou desça, fazendo movimentos circulares quase imperceptíveis e depois a esferográfica presa entre as suas pontas, ver a tinta a cair pela carga até à esfera que, ao entrar em contacto com o papel, vai rolando e largando a cor que desenha estas mesmas palavras que vou escrevendo em letra tombada pela ventania do pensamento. Há qualquer coisa de magia em tudo isso, em quase sentir as palavras a correr das nossas veias até poisarem no papel, como se esta tinta azul fosse o vermelho do meu sangue. Estas palavras, mesmo enfadonhas ou medonhas, ou outro –onhas qualquer, são a minha alma.
Escrever num computador… isso não É escrever! É digitar!
Escrever não é só preparar um texto e cagá-lo limpinho e prontinho para guardar nos Meus Documentos, UmNomeQualquer.doc, talvez imprimir em folha A4 frente e verso… Escrever é voltar atrás e rasurar, e rasgar, e cortar frases a meio para as pôr noutro sítio, não usando Ctrl+X / Ctrl+V, mas com uma seta! Ou uma chamada, um asterisco, e fazer mais e mais sinalefas, e chegar ao fim e amassar a folha para começar tudo de novo, ou um grande traço por cima de tudo e passar para a página seguinte do caderno, não fazer um Del à selecção CTRL+T! Escrever é despejar os detritos da alma, é sujar uma folha com o que se sente, e com a confusão do pensamento, não é chegar ao fim com uma folha limpa como mármore de catedrais que não mostram a violência das almas sofredoras! Ao ler um manuscrito temos a noção das angústias, das dúvidas, dos estados de espírito caóticos de quem escreveu; ao ler um ecrã, ou uma impressão, tenho apenas um resultado final, já mastigado e já sem o sentimento da criação primordial, sem as provas tangíveis desse caos de querer dizer tanta coisa ao mesmo tempo e ter apenas uma mão para escrevê-las apenas numa vida!
Os magos não se calam, eu sei… a seguir à escrita virá a pintura, os pincéis substituídos pelo software; quem diz a pintura diz ainda mais rapidamente a arquitectura! O cinema já por lá caminha, a música nem se fala… as obras-primas da modernidade do século XXI já não se querem fazer à mão, e por isso não as há verdadeiramente, que uma obra-prima é uma coisa manufacturada! Acho apenas difícil que consigam digitalizar as pessoas no palco de um teatro, de um bailado, mas ainda hão-de encontrar forma de esculpir com o teclado e o rato!

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