Pequenas diferenças entre o ser humano e a restante fauna... #2

A Preservação da Espécie

Nos ecossistemas vários do planeta em que deambulamos em círculos e voltinhas e revoluções sem cravos à volta de não sei quantos eixos e centros imaginários, coabitam inúmeras espécies animais, cada uma delas lutando pela sua sobrevivência, quase sempre em confronto directo com os interesses de outras. Repare-se, porém, como, por norma, as relações dentro desses sistemas de vida se regem por uma certa harmonia, ainda que selvática, que impede a sua implosão. Se há animais hierarquizados numa escala predatória em que algum assume, por ventura, o topo isolado, também é vero que nenhum desses animais tem como costume matar sem sentido, sem seleccionar cuidadosamente as suas presas, salvo raras excepções, como por exemplo uma tal de histeria sanguinolenta que ataca as hienas no período de desenvolvimento das crias de leão marinho nas costas africanas, mas maioritariamente, numa larguíssima maioria de quase unanimidade, as coisas não se passam assim. Cada animal mata apenas para comer adequadamente em relação às suas necessidades, estejamos a falar de carnívoros ou herbívoros, talvez devido a uma instintiva inteligência que os alerte para o facto de uma excessiva caça poder diminuir as suas hipóteses de alimentação futura. Curiosamente, a relação entre predadores e presas é, estatisticamente, favorável a estas, isto é, há mais presas que predadores, sendo que, como os predadores se tornam presas de outra espécie, os números vão diminuindo à medida que a presa o for para menos caçadores. Diríamos, por graça, que no topo da cadeia está um elo apenas de um elemento, uma tal de morte que a todos apanha, mas adiante… Claro que sabemos que este esquema não é assim tão rígido que seja sempre verdadeiro, não obstante, é quase sempre assim que se passa, e por isso é que há mais sardinhas (ainda) que tubarões brancos. Esta diferença de número não se explica somente pela contenção predatória dos que estão acima na escala, explica-se ainda pela maior disponibilidade de procriação das espécies que estão abaixo. Enquanto aquelas procriam, normalmente, uma vez por ano, às vezes em hiatos de tempo mais alargados, estas fazem-no muito mais regularmente, a espaços mais curtos, cada vez mais curtos quanto mais se desce. Por instinto e auto-regulação natural, todas as espécies sabem que é assim que deve funcionar.
Com o ser humano, porém, as coisas funcionam de outra forma. Primeiro, porque o ecossistema humanizado é uma larga percentagem do terreno habitável do planeta. Ao contrário da maioria das espécies, o homo sapiens saiu da sua zona de origem demarcada por iniciativa própria, alargando o seu território a quase todos os climas e espaços, desde a tundra à selva tropical (uma expressão clássica, esta), deu-se até ao luxo de expandir a níveis absurdos a ideia das abelhas e criou os seus próprios habitats, as cidades, esses espectros de colmeias sem rainha, mas com zumbido, sem mel, mas com fumo e lixo a rodos.
Esses locais são o aglomerado derradeiro das manchas incomensuráveis de humanos, crescendo mais e mais, a um ritmo muito para lá do normal, uma multiplicação incontida de espécimes, sobretudo quando se pensa na posição hierárquica que nos atribuímos, um contra-senso.
Não satisfeito com tudo isso, o Homem, escudado na crença de superioridade incontestável, optou por interferir em todos os ecossistemas a seu bel-prazer, não observando nenhuma das prerrogativas inseridas no código genético da preservação das espécies. Em vez de caçar apenas o bastante para a sobrevivência, começou a fazê-lo com intuito de atingir a satisfação alarve, de se saciar profundamente na ingestão de carnes e peixes e vegetais, uma e outra vez, até mesmo fazê-lo por puro divertimento. Com o crescimento exponencial da espécie, as suas presas naturais começaram, obviamente, a escassear. Não obstante, munido de uma espécie de inteligência pérfida, razão creditada da sua superioridade, o Homem começou a criar as suas próprias presas, os seus alimentos, a fazê-las nascer, crescer, para depois as matar e assim saciar a sua fome imparável. Esta imagem não pode deixar de me fazer recordar aqueles três filmes da trilogia matrix e a ideia de pessoas cultivadas para servirem, elas próprias, de fonte de energia para as máquinas.
Embora tarde, a Humanidade percebeu que a destruição dos habitats naturais (por estas e outras, muitas mais, e bem variadas razões) levou a uma degeneração do planeta, com as extinções de espécies a sucederem-se a ritmo alucinante, desequilibrando a existência da vida, ela mesma. Agora, aflitos por isso poder significar o seu próprio fim, os homens tentam remediar o que parece irremediável…
Não deixo de sentir um odor fétido de ironia em toda esta situação. O Homem, afiançado na sua soberba e avançadíssima massa encefálica, conseguiu dominar o planeta, catapultar-se para o topo dos topos hierárquicos entre a fauna terráquea, predador sem rival e sem nunca cair na situação de presa. Pelo menos cultiva essa ilusão, esquecendo-se que o supra-sumo dos animais é presa fácil de minúsculos seres, microscópicos vírus e bactérias, aqui e além surgidos em vagas de epidemias, mas é-o também de si mesmo. Ao contaminar o mundo com os seus excessos, o ser humano acabou por criar as condições ideais para a extinção da própria espécie, o que é uma autêntica prova de estupidez, indo contra tudo o que é normal na natureza.
Curioso como neste momento ele tem nas suas mãos níveis de tecnologia incomparáveis com qualquer outra época; tecnologia, essa, capaz de possibilitar a cura para muitos dos seus males e dos do planeta em que vive, tendo, simultaneamente, tão pouca vontade de o fazer. Uma espécie de gloriosa decadência de mecanismos extraordinários e almas arruinadas. O grande festim à bomba, antes da hecatombe final!

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