Pequenas diferenças entre o ser humano e a restante fauna... #3

A Plumagem

Com toda a certeza, quem lesse o título, chamemos-lhe assim, e o subtítulo deste corpo de texto que se prolongará não se sabe por quantos parágrafos, de não se sabe muito bem quantas linhas, com não se sabe muito bem quantas palavras cada, ficaria com a ideia de uma certa contradição evidente, pois a plumagem não é, de todo, uma pequena diferença entre o Homem e as restantes espécies animais, é, isso sim, uma grande diferença, porquanto o ser humano não possui plumagem sequer. Certo! Mas também errado! Porque do que se trata aqui não é a plumagem enquanto tal, o substantivo comum colectivo que designa o conjunto de penas, antes todo e qualquer tipo de artifício embelezador, as caudas de pavão dos animais, todos eles, incluindo as dos homens. Já por aqui se falou uma vez das diferenças de significado dos símbolos corporais/fisionómicos, na perspectiva da comunicação. Aqui também é um pouco isso, apenas numa versão um pouco mais alternativa, mesmo que sem touradas.
Normalmente, os artifícios fisionómicos que os animais possuem, exempli gratia, as caudas vistosas, as escamas de cores berrantes, as armações de hastes longas, têm objectivos muito bem definidos. Servem para avisar os outros animais do perigo de tentar atacá-los, e/ou servem para marcar uma posição dominante que proporcione ao ser em questão uma maior taxa de sucesso nas coisas da caça e da procriação. Ou seja, tudo questões muito pragmáticas. O pavão não exibe a sua cauda por pura vaidade, nem por outro motivo qualquer de gozo pessoal, mas apenas porque isso faz parte do seu código genético, é o meio de demonstrar superioridade, pelo menos de tentar, de lutar por um espaço.
Sim, e no ser humano também é verdade que os artifícios de embelezamento acabam por servir para conquistar um lugar no mercado da preservação sexuada da espécie, é verdade que as maquilhagens e as coiffures e os pendericalhos de bijutaria e as roupas extravagantes, tudo isso serve para conquistar parceiros sexuais, é a forma humana de seguir o instinto e as regras naturais da luta por um lugar, não ao sol, mas à cabeceira da cama, acompanhado. É verdade que, se analisarmos bem, não há propriamente uma diferença entre o ser humano e as restantes espécies animais neste assunto…
E também é verdade que há! (há qualquer coisa em mim que me está a levar a aceitar enunciações contrárias simultaneamente!)
Vejamos… como já referimos, e vamos manter-nos no mesmo exemplo, o pavão apenas mostra aquilo que tem, a sua cauda, que pode ser mais ou menos eficiente, conforme a genética tenha, ou não, sido boa companheira, e por aí se fica; deixa na sorte da herança de adn o seu destino. Como já vimos também, com o Homem não é bem assim; reparemos como a grande maioria dos atributos que ele ostenta não são naturalmente seus: as roupas, as jóias, as cosméticas, os perfumes… De facto, poucos são os que exibem atributos realmente naturais, seus de nascimento, sem outras modificações. Mesmo no caso das musculaturas, que são muitas vezes trabalhadas para irem além do que a genética providenciou, acabando assim por não serem originais, de fábrica, digamos (que eu me lembre, nenhum pavão pinta a cauda, nem outra coisa do género!) Portanto, temos já uma pequena diferença, à primeira vista talvez negligenciável, mas que é fulcral, pois dela advêm todos os posteriores raciocínios.
É que se o ser humano usa artifícios, verdadeiros artifícios pois não são naturais de si, para se valorizar perante os outros, também é verdade que o faz para aumentar a sua própria auto-estima, a sua opinião de si mesmo. (Pelo menos esta será uma diferença enquanto não se provar que os restantes animais têm opinião de si mesmo, auto-estima, egos e alter-egos, e por aí fora. Têm noções intrínsecas das duas capacidades, isso parece evidente.) O mais curioso, porém, é verificar como muitas vezes é conseguida esta manobra de auto-valorização… precisamente usando o mais puro artifício, que é esconder defeitos com a exaltação de virtudes que não existem. Um exemplo que me parece ideal, os famosos soutiens capazes de fazer parecer as glândulas mamárias femininas bem maiores que aquilo que são na realidade. No fundo, chamar a atenção para o pormenor mamário, fazendo-o parecer um pormaior pode não ser mais que uma forma de tapar tudo o resto. Pensamos que sim. (E não pensamos que não)
E como temos a mania de pensar, pensamos agora já não no homem indivíduo, mas no homem colectivo. Não será que as civilizações, ao longo dos milénios, têm vindo a fazer exactamente o mesmo que cada humano faz? Tapar defeitos com virtudes inexistentes, realçar as coisas positivas que em si encontram para se superiorizarem face às outras? Esse artifício, essa arte, a arte. Sim, não será a arte apenas uma forma de disfarçar o defeituoso que o ser humano é, que o mundo é, perspectivando-os de formas completamente diversas da realidade? Porque o Homem tem horror aos defeitos do mundo, e aos seus, por isso tantos tentaram criar mundos perfeitos, mesmo que apenas nas suas cabeças. A arte… esse subterfúgio face ao mundo real. Não serão os monumentos fúnebres dos egípcios uma forma de esconder a morte tentando criar uma ilusão de imortalidade? Mesmo sabendo que o ser humano é mortal, ao criar uma coisa que o seja, ou pelo menos que a tal almeje, finge sê-lo também, não seria esse o pensamento faraónico? Não será a criação de religiões a prometer uma vida depois da morte em condições paradisíacas uma forma de arte, porquanto pressupõe aquilo que parece irreal, a imortalidade, a perfeição, uma máscara para tapar o horror do mundo sem nada disso…
Talvez arte não seja nada dessas coisas… é tarde, vou dormir, sem artifícios nem plumas de pensamento, tudo isto é cru e os sonhos sei bem que não passam de uma partida nocturna…

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