Ó Chefe, foi o despertador que avariou...

Era uma noite branca de Inverno, há muito tempo atrás...

A Lapónia estava imersa num banho de negrume pontilhado de miríades de estrelas, com a espuma fria da neve que caíra durante os últimos dias cobrindo a terra, as árvores, os telhados.
Os passos, amortecidos pelos flocos caídos, como numa almofada fofa, do Pai Natal que chegava a casa depois de mais uma noite pelo mundo a distribuir jornais gratuitos, Dica, Destak e Metro à cabeça.
Pela janela espreitando, poder-se-ia ver que em casa, defronte à lareira crepitante, pés cobertos com uma mantinha de aquecimento em pele de ovelha do Árctico, o Coelhinho da Páscoa esperava a sua chegada de mais um dia de labor intenso, com a mesa festiva posta de doces típicos da Lapónia, à base de haste de renas, e ervas e assim...
- Nicolau! Finalmente chegaste! Já é tardíssimo…
- Desculpa, Dentuças, mas o trânsito na VCI estava uma merda. Como o costume…
- Nicolau! Sabes que odeio que digas palavrões.
- Se conduzisses um trenó na altura do Natal, também os dizias.
- Oh!
O Pai Natal não conseguia esconder a amargura dos quarenta! Quarenta anos dedicados a espalhar a alegria pelo mundo, em forma de presentes matutinos nas meiinhas penduradas à beira da lareira que faziam, de todas as crianças, crianças felizes! Agora, com a multiplicação exponencial de largas superfícies comerciais, com o advento da feroz publicidade, e a mimalhice crescente das crianças do mundo ocidental, o seu lugar desaparecia, e ficava apenas a imagem rotulada das coca-colas, e a estatuária dos pinheirinhos. Os miúdos pediam aos pais, e os pais compravam… Já ninguém ligava às meias, ou aos presentes do Pai Natal, restavam-lhe apenas os jornais gratuitos, e um ou outro local ainda não tocado pela febre consumista. Até porque nos países terceiro-mundistas, quando tudo ainda corria bem, havia cedido o franchising às super-potências da Guerra Fria e elas continuavam a entregar a todos os meninos armamento do mais moderno para se matarem uns aos outros, sem intenção de devolverem a exploração desses territórios novamente ao Pai Natal.
Bardamerda para isto! – pensou, enquanto descalçava as botas.
- E então, que se passa?
- Nada de especial. O Nicolas Cage fez um novo filme e queria escrever um livro, a Soraia Chaves também fez mais um filme, e se calhar também gostava de escrever um livro, e os Gato Fedorento vão fazer a passagem de ano na RTP1, e pelo menos um deles já lançou um livro.
- E não se passa nada de realmente importante?
- Ah, o LIDL vai ter à venda umas máquinas de café muito jeitosas, de pastilhas, a 40 €.
- Ah, isso é bom, mas já sei como é, aquilo abre às 9h e às 9h05 já não há nada. E eu para me levantar cedo não estou com vontade.
- Quando trabalhaste no circo Cardinalli, ou com os Monty Python, não te queixavas de acordar cedo.
- Não sejas assim, não digas essas coisas estúpidas!
O Coelhinho da Páscoa não conseguia esconder a amargura dos quarenta! Quarenta anos dedicados ao mundo do espectáculo, enquanto membro da trupe circense Cardinalli, o maior circo do mundo, nos espectáculos de magia em que aparecia sempre gloriosamente branco da cartola do seu mestre; ou enquanto figurante em variados filmes, por vezes com nomeações para Oscar na categoria de Melhor Performance Animal. Mas o pêlo foi escurecendo, ganhando tonalidades cinzentas que brilhavam menos perante os holofotes, e acabou ultrapassado pelo Dentolas, outro coelho-artista, que acabou por ser escolhido no casting para os mais recentes remakes de Alice no País das Maravilhas, ou para aquele cameo no Matrix.
Falsário, eu bem sei que ele pinta o pêlo. – pensou, enquanto pegava nas malhas para fazer um pouco mais de tricot.
- E então o Benfica?
- Que queres dizer com isso?
- Calma, Nico! Estou só a perguntar como ficou o jogo!
- Ganhámos! E vocês amanhã perdem, que eu já arranjei prendas para as pessoas certas, e ficam só a sete.
- Como os anões? Ah, ah!
- Ri-te enquanto podes, que em Maio ainda choras!
- Isso… Por falar em rir, os Gato na passagem de ano? Mas eles não iam parar de fazer o programa, ou coisa assim? E vai ser gravado ou em directo como antigamente? Ah, que saudades desses programas!
- Isso já não sei, que só leio as capas, não dá tempo para mais.
- Que se passa contigo? Todo rezingão! Nem parece teu andares assim. Estás preocupado com alguma coisa?
- Se estou preocupado com alguma coisa? Se estou preocupado? Não, claro que não! Só com a puta da inflação, a puta da Euribor, o fim do caralho das SCUT! Escolhe. Como vamos governar a nossa vida, numa situação destas? Ainda para mais, com a ASAE sempre a rondar, não arranjas emprego, por causa da tularémia.
- Ei, que é isto? Que se passa contigo? Pareces doido! Jesus…
- O quê?! Que queres dizer com isso?
- Pareces doido! A falar assim, como nunca vi em 30 anos!
- Ah, sim… sim. Desculpa.
- Vou mas é fazer um chá. Tília e camomila, para ver se acalmas.
O Pai Natal tirava o casaco, menos vermelho agora, passados tantos anos de desgaste – Foda-se, isto assim não pode continuar! – encharcado pelas chuvas intensas a norte do Anticiclone dos Açores – Tenho de ser um homem, e contar-lhe!
- Olha que maravilha de chá! Queres a tua caneca tamanho jumbo, Nico?
- Dentuças… eu… eu não sei como dizer isto. Eu… tenho de confessar…
- Que se passa, Nico?
A voz rouca do Pai Natal, consequência de milhares de noites a enfrentar os fenómenos meteorológicos mais adversos, gaguejava, saía em pequenos fonemas, monossílabos, incoerentes, confusos… – Porra, tem de ser!
- Dentuças, ando a ter um caso com o Menino Jesus! – Foda-se, está dito…
O som do bule e da chávena a caírem, o som estridente e estilhaçado da chávena e do bule a caírem… Só isso quebrou o silêncio de um segundo eterno, absolutamente de vácuo, em que o Coelhinho da Páscoa olhou para o Pai Natal, já com os olhos marejados de lágrimas, sem acreditar no que tinham acabado de ouvir as suas longas e fofinhas orelhas.
- Ah, seu desgraçado! Eu sabia! Eu sabia! Eu desconfiei de chegares tantas vezes com palha enfiada nos bolsos e esse cheiro a manjedoura no barrete!!! Como?! Como foste capaz de fazer isto?
- Eu… eu… Foi uma coisa que… aconteceu… numa das minhas viagens de negócios ao Médio Oriente. Quando tratei com os israelitas aquela prenda… a doença do Arafat…
- Isso já foi há 3 anos! Andaste a esconder-me isto durante três anos?
- Não foi bem… só começou passado uns meses.
- Ah, e dizes isso como se assim estivesse tudo bem! Como foste capaz? Quer dizer, que andasses metido com as renas, ou com aqueles anões de orelhas esquisitas que trabalhavam contigo na fábrica antigamente, ainda podia perceber, mas… o Menino Jesus?
- Eu… isso das renas, e dos anões… O Rudolfo e o Nelson Ned disseram-te alguma coisa?
- O quê? Queres dizer que… também… Uuuiii! Qu’é isto?! UM OVO COLORIDO A SAIR-ME PELO CU? Já viste o que me está a acontecer? Por tua culpa! Tua!!!
- Coelhinho... desculpa...
- Odeio-te, odeio-te, odeio-te!!! Vou-me embora para o país das Maravilhas, e nunca mais te quero ver, seu badocha horrível, nunca mais!!! Ainda para mais benfiquista! Pfff…
O estrondo da porta a bater ecoou na cabeça do Pai Natal como uma gigantesca claquete a dizer FIM, sem direito a repetição, quanto muito reposição no canal da memória. Adeus, cauda fofa... - pensava, enquanto a porta de novo se abria, numa réstia inesperada de esperança, surgindo de novo a cara do seu Dentuças, quem sabe para lhe dizer - Perdoo-te!, ou - Amo-te e não consigo viver sem ti!, ou...
- Ah, já agora, és péssimo na cama!

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