Luís e Cláudia, chamemo-lhes assim, não se conheciam, apesar de viverem quase paredes meias, um de cada lado da Circunvalação, mera estrada exterior urbana, duas faixas, por vezes apenas uma, em cada sentido, com a largura psicológica de um largo oceano Atlântico onde apenas resistem pequenas ilhas e arquipélagos, micronésias sem fim, num mundo humano sem continentes. Ambos clicaram na opção gosto, de uma rede social, chamemos-lhe facebook, em que ambos detinham conta e inúmeros contactos, seus únicos verdadeiramente diários contactos feitos à distância incomensuravelmente paradoxal da fibra óptica, quando viram umas iniciativas partilhadas, manifestações contra o mau governo de Portugal, contra a sociedade política, pelas oportunidades para a geração à rasca. reviam-se nessas ideias semi-abstractas e pouco assertivas, queriam que lhes fossem reconhecidas as suas competências em forma de rolo de papel e selo prateado, queriam que isso significasse um automático contrato na especialidade, de que eram indubitavelmente especialistas, mesmo que com as notas résvés arrancadas depois das ressacas das queimas das fitas. Não queriam emigrar, com tudo o que isso significava, sobretudo a parte da responsabilização individual com que teriam de arcar, longe dos pais, e dos amigos do café, ciber-café, claro. concordaram, afirmaram peremptoriamente gosto, vou participar, viram depois um vídeo de um gato fofinho a brincar com um novelo, partilhado por uma amiga comum que também gostava e ia participar da manifestação, chamemos-lhe Sofia, comentaram, comentaram os comentários alheios, foram ver os perfis um do outro, completamente públicos, viram as fotos, reconheceram as moradas, coincidiram os gostos, que giro, partilharam mensagens privadas e depois correio electrónico e depois mensagens de telemóvel...
No dia 12 de Março de 2011, Luís e Cláudia estiveram no motel Flamingo, a aproveitar o dia de chuva no calor do quarto alugado, impessoal. Sofia ficou em casa, com a desculpa da constipação e os trezentos mabecos presentes na Praça da Batalha logo debandaram, fartos do arrulhar dos pombos e dos jornalistas, e sem eco nos ouvidos dos governadores civis, em vias de serem extintos, enquanto cargos, claro, eles que estavam já esvaziados de poder. Quando Cláudia teve um problema digestivo, não pôde comparecer ao encontro marcado, um dos encontros mais ou menos regulares que agendava com Luís, e por vezes também com Sofia, quando o namorado desta estava para fora. Quase vomitou as entranhas durante um dia inteiro. No dia seguinte, só sentiu um ligeiro enjoo matinal, e no dia seguinte, e no dia seguinte, e no seguinte, no seguinte, seguinte, até reparar que a menstruação havia parado, o mundo parou, repentinamente, aquela quarta vez, sem preservativo, porque tinham acabado, aquele fatídico dia 12... telefonou ao Luís, marcou um encontro, mas no café, desta vez, ali em Leça, em frente ao mar, não, não podia ser antes no motel... estou grávida, Luís, Luís, porque é que não me atendes? Luís desapareceu-lhe do mapa, desmarcou-a como amiga no facebook, no twitter, no live messenger, no gtalk, bloqueou-a, foi trabalhar para o Alentejo, porque tinha tido uma oportunidade de ouro que o namorado de Sofia lhe tinha arranjado, e encobriu-se de uma neblina de esquecimento desonrado.
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Está sol. Gustavo acorda, estremunhado. A mãe já está a trabalhar há umas horas no supermercado. São onze da manhã. Não lhe apetece estudar para o exame final do curso. Entra na internet. recebeu duas mensagens novas na rede real dream, um vídeo de um gatinho fofo, e um convite para participar numa manifestação contra todos os políticos que fazem de Portugal um circo, sobretudo contra Pedro Santana Lopes, o Presidente da República que, por cinco vezes em menos de dois anos, dissolveu o parlamento, e agora exigiu uma nova formação parlamentar. Sim, vou participar. Em holograma, ou fisicamente?... ... Holograma, acho melhor, que nesse dia 12 de Março é o meu exame, e isto é só mesmo na capital. Foi tomar banho.
A mãe chegou para almoçar, estafada, velha, enrugada. Comem em silêncio, enquanto o monitor hdmi fora de moda há alguns anos debita imagens. No parlamento, o primeiro-ministro endossado dirige-se à nação. Este Luís ... é uma peça mais ou menos, quebrou o silêncio, Gustavo. E aquela mulher dele, uma Sofia ..., também ninguém sabe de onde veio. Só se sabe que enriqueceram rápido numas minas, e depois o marido dela morreu, eles casaram, meteram-se na política... Cala-te, Gustavo. Ele não percebe. a mãe nunca tinha ficado assim, lívida, ao falarem de política. Este dia 12 vou mandar um holograma à manifestação contra esta palhaçada de gravata. Porque, caros deputados, estas manifestações serão ridicularizadas pela realidade. Quem é que já ouviu falar de tal coisa, ou participou... Meu grande filho de uma puta, exlamou Cláudia, antes de desabar sobre a mesa, num choro compulsivo. Gustavo ficou estático, a comida ainda por engolir. Cláudia contou-lhe, quando finalmente recuperou, a verdade. Com os braços sem força e o filho ainda impávido de choque, foi trabalhar, antes que lhe descontassem o dia por chegar mais de cinco minutos atrasada.
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Hoje, dia 12 de Março de 2034, às quinze horas e vinte minutos, um dos participantes na manifestação contra o regime político baleou o recém-endossado primeiro-ministro, Luís ..., causando-lhe ferimentos graves que resultaram na sua morte, no hospital central de Lisboa 2, pelas dezoito horas e treze minutos. O primeiro-ministro decidiu deslocar-se ao local da manifestação para tentar dialogar com os líderes deste movimento auto-proclamado de pacífico, prometendo-lhes uma mudança radical nas políticas do país.
O autor do disparo, identificado como sendo Gustavo ..., é residente no Porto, uma das cidades mais contestatárias dos últimos anos no panorama sócio-político luso. Tendo sido apanhado e confrontado com as suas razões, terá dito, numa mensagem que ainda não se conseguiu perceber totalmente: o holograma não conseguiria fazer isto, desculpa mãe, mas tinha de matar o pai para este país poder fugir da própria morte.
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