Cinco e meia

— Um pingo e uma nata.
— Um pingo?
Sim, um pingo, tem de se aproveitar as vantagens, as promoções, se o café custa o mesmo que o pingo, há que usufruir da paridade de preços, não deixar escapar a oportunidade de levar no estômago três gotas de leite, há que aproveitar… Talvez fosse uma boa ideia, inexplorada, tanto quanto sei, para as funerárias, promoções dois em um, a maravilha do mundo civilizado na concentração do máximo no mínimo espaço, sem tempo nem desejo de desfrutar coisa alguma separadamente, nas texturas de cada objecto por si só, antes ter tudo de uma só vez, em tropel, All in a bucket with the eggs on the top!, uma boa promoção para suicidas, no pagamento, no pré-pagamento do seu funeral oferecemos nós mesmos a cicuta, mas apenas da melhor, importada directamente da Grécia, da mesma casta que aviou o Sócrates, o Don Pérignon da morte por vontade própria e expressa servida em taça alta, adeus! a tudo o que lhe pareceu tornar a vida uma coisa miserável de ser vivida… Era capaz de ser vantajoso para a humanidade no seu todo, ver-se livre dos covardes em catadupa, ficarem apenas os suficientemente corajosos para promoverem a extinção da espécie à lei da bomba e do afogamento em lixo, em mares de lodo da civilização, o céu em chamas a cair-nos em cima, as almas feitas estátuas de sal, contemplando a chuva de enxofre.
Está a chover lá fora, chuva miudinha, chuva molha tolos, porque tolos são os que se apaixonam, e as almas enamoradas distraem-se nos enlevos doces do amor, não notam que o corpo se encharca pouco a pouco, por isso são tolos, por isso a chuva molha tolos, apesar de miudinha, como a que cai cá fora, empurrada assimetricamente pelas deslocações de massas de ar a que chamamos vento. Talvez te encontre daqui a uns passos, ao virar da esquina, refugiada sob o umbral de uma porta, na entrada recolhida de um prédio, encostada a uma parede aproveitando o abrigo momentâneo e parcial dos beirais dos telhados, como uma andorinha num algeroz em que construas o ninho da tua espera, como te encontrei da primeira vez, enregelada, encharcada, tremendo de frio, as mãos sôfregas a roçarem uma na outra tentando-se aquecer no vapor húmido da expiração, os olhos negros como balas de carvão com que atingiste à queima roupa o nó que se apertou instantaneamente no estômago, os cabelos pretos, molhados, caindo em pingas pelos ombros, cheirando à sensualidade da relva alagada nos primeiros aguaceiros de setembro, a sexo húmido e desenfreado no velho divã do teu quarto, em dias como este, onde nos deixávamos cair extenuados de suor, abraçados enfim ouvindo o gotejar no parapeito da janela, o embalo rítmico do sono que chegava em passos de lã, distraídos como os meus, foi já aqui adiante, uns passos depois desta esquina cega, num dia assim de algodão cinzento…
— Um euro e dez, por favor.
— Aqui tem, obrigado!
Aristides Sousa Landeira

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