Da fauna tuga... #5

O tuga tem uma assumida relação de amor-ódio com a fila. Longas dissertações de mestrado e doutoramento e de mesa de tasco ou café poderiam ser criadas a partir desse imbróglio sentimental das lusitanas gens perante a acumulação ordenada de pessoas em espera de algo. Não creio que alguém tenha escrito alguma tese científica sobre o tema, o que mostra como as ciências andam sempre um passo atrás da humanidade e daquilo que realmente tem valor na prossecução dos dias.
O tuga abomina a fila de trânsito, desespera diante de um aglomerado de veículos ruidosos e fumarentos que param, arrancam, param, arrancam, param, arrancam em soluços de irritabilidade e apoquentação, porque há sempre um sítio qualquer aonde chegar a horas de trabalhar, de ter uma reunião, de apanhar os miúdos, de mil e uma coisas inadiáveis. Desespera quando as chuvas trazem mais e mais acidentes, a sinistralidade de um atraso que irrita, mais que outra coisa, que irrita a vontade de cumprir com a rotina, e há a humidade que se condensa no espaço fechado e claustrofóbico do habitáculo, que de habitável não tem nada, absolutamente nada do que o nome parece atribuir-lhe, nem sequer ar condicionado, porque o tuga privilegia outros acepipes, quase sempre estéticos, cãezinhos e nossas senhoras de embalar pela viagem fora abanando-se em movimentos assimétricos acima da âncora de íman ou de cola no tablier cheio de outros e tantos outros pendericalhos; aventais e mamarrachos de fibras frágeis, sempre prontas a desfazerem-se ao mínimo toque num rato morto na estrada; o tuga aprecia mais o aparato sonoplástico de belos auto-rádios e colunas e woofers e subwoofers para botar o bass no máximo ao ponto de estremecer os néons e os neurónios, prefere isso ao conforto climatizado de uma temperatura constante o ano todo, faça chuva ou faça um sol capaz de derreter alcatrão e permitir estrelar ovos no capôt ou no tejadilho, capaz de liquefazer os plásticos dos volantes, de modo que nem uma centena de janelas abertas reduziria o efeito de estufa, o suor acumulado, em gotas e mais gotas, como torneiras porosas da epiderme com os vedantes estragados, na papa enrugada da camisa colada ao corpo e aos estofos num desconforto putrescível. O tuga abomina a fila de trânsito pela manhã, ao fim da tarde, pela hora de almoço ou à noite, às segundas, terças, quartas, quintas e sextas e aos fins-de-semana também, o tuga abomina as filas, e por isso não anda de transportes públicos, porque à espera do autocarro ou do comboio ou do mais mítico eléctrico há-de ter de esperar numa outra fila, mas em pé, e isso é a maçada absoluta, ter de esperar verticalmente, e como se fosse um animal bípede, o homem, quando toda a gente sabe que ele é um animal glutical e glutípede, ou seja, cuja posição preferencial é com os glúteos refastelados numa cadeira, num sofá, num banco de jardim, e cuja deslocação se deve dar nessa mesma posição, sentado. É que não só tem de esperar em pé, como se arrisca a ter de andar dentro de um veículo também em pé! E isso não é conforme aos desígnios da evolução! Pelas barbas de Darwin!
Para estar em pé, num sufoco visceral e metafísico, já bastam as filas das repartições públicas, em especial a mais odiada e mefistofélica delas todas, esse lugarzinho saído directamente do inferno por uma porta negra e tenebrosa que dá pelo nome de repartição de finanças. Compra papéis, preenche papéis, engana-se a preencher papéis, volta a comprar mais papéis, e se calhar é melhor levar já dois, que nunca se sabe, e preenche papéis, entrega papéis, mas afinal não era nada assim, e volta a preencher papéis, e volta a esperar nas filas intermináveis, psicologicamente intermináveis, das finanças, mais as suas dezenas de ventoinhas e os zigurates feitos do tijolo e da argamassa dos arquivos espalhados pelas secretárias, folhas e mais folhas, numa devastação amazónica de celulose consumada em espasmos de burocracia, ah, já só faltam mais dez pessoas, mas isso de nada interessa, porque o tasco fecha às quatro e meia, ainda só são quatro e vinte e as portas encerram-se sem satisfações e o povo fica furibundo, há manifestações de gargantas vociferando há atropelos e esbracejares há sangue sangue sangue! Não, não há sangue, há apenas a resignação de voltar no dia seguinte para esperar estoicamente em pé, mais uma porrada de horas, pelo som mágico da voz do funcionário, próximo!, seguinte!, faz favor!, seja qual for a expressão, ah, ser o homem na frente da fila de carrancudas expressões!, porque o tuga odeia filas, ainda para mais públicas, ainda para mais se tiver de despender carcanhóis, e quem gostasse de estar numa fila dessas havia de pagar imposto, o malandro!, porque o tuga odeia filas fiscais, e por isso não usa declarações cibernéticas, que nunca se sabe quem nos rouba as senhas, é que anda por aí muita gatunagem, anda por aí muita gente mal intencionada, que isto já não é como no antigamente, quando o senhor presidente do conselho mandava e tudo corria bem, que nem impostos pagávamos e comíamos sempre que nem uns abades, meia sardinha com broa ou um pau de marmeleiro pelas costas abaixo... Velhos tempos!
O tuga evidentemente que odeia filas, porque são empecilhos, porque são sanguessugas de tempo e dinheiro, para lá do tempo ser em si mesmo dinheiro, segundo os entendidos, porque não lhe dão nada a não ser incómodos, o tuga odeia filas a não ser que sejam para receber qualquer coisa à borla, mesmo que seja uma coisa tão inacreditavelmente desnecessária e fútil quanto um descascador de bananas ou algo semelhante. − Amostras de maquilhagem? Manda vir! Eu sou homem? E depois?, fica para a minha mulher! Sou solteiro? E então?, fica para a minha irmã! Sou filho único? Não há problema, que a minha mãe usa! Sou órfão? Porra, tenho é uma vida miserável, isso sim! Mais vale dedicar-me ao transformismo e mudar o nome para mónica vanessa ou verónica alexandra! Sim, o tuga adora que lhe dêem coisas, acho mesmo que quanto mais inúteis, mais satisfeito ele ficará, e não interessa que a fila atinja dois quarteirões, se o tuga sentir o cheiro a brinde, ele espera, nem que seja uma tarde, para conseguir aquela admirável alegria de puto que acabou de receber uma prenda, sendo que, ao contrário do puto, o tuga adulto não fica de beicinho por não ter recebido o que realmente tinha pedido ao pai natal pois o que é grátes é bom! Melhor ainda que bosch!
E o tuga adora também filas dançáveis, os famosos comboinhos, cancro sem cura que alastra em metástases hiper-agressivas pelos tecidos humanos de casamentos, baptizados, passagens de ano, carnavais e outras folias, outros aglomerados festivos onde haja música, porque a vontade em se pôr entre dois tipos quaisquer, a oferecer e a receber biqueirada ao que vai à frente e do que vem atrás, respectivamente, essa, existe naturalmente; o desejo incompreensivelmente ardente de besuntar a palma da mão de suor alheio, e cantar, a compasso, meu amigo charlie brown…, mamã eu quero… e outras harmonias dadas ao fenómeno.

Basicamente, o tuga funciona assim quando depara com uma fila, odeia-a, e não consegue viver sem ela; amaldiçoa-a a todo o instante, e é dos poucos momentos em que consegue socializar com outros espécimes, mesmo que em conversas de circunstância de tempos e futebóis e doenças do reumático e por aí fora; protesta insistentemente, mas não concebe um mundo em que ela não tenha lugar. Claro, há sempre os comportamentos desviantes por parte daqueles tugas estranhos que praticam ritos misteriosos, talvez cabalísticos, como sucede, não poucas vezes, em locais onde a fila se destrói, se estilhaça em aglomerados disformes e dissimétricos de pessoas munidas cada qual com a sua senha, plim… 233, plim… 234, plim… 235, há aqueles tugas que conseguem a maravilha de estar não num, mas em dois lugares da mesma fila, por vezes três ou mais, fruto de várias senhas retiradas em momentos diferentes, não vá o diabo tecer mais uma das suas artimanhas e eu ser apanhado na cagadeira enquanto chamam o meu número, assim sempre tenho outra senha já tirada, por via das coisas. Se outro benefício não tivesse, o sistema de senhas permitiu à humanidade aproximar-se do estatuto divino, na questão da ubiquidade pelo menos. No entanto, não deixa de ser um comportamento estranho à norma retirar uma e outra e mais outra senha, ainda assim, menos estranho que aquilo que muitos desses seres fazem com as sobrantes. Em vez de, naturalmente, as mandarem para o lixo, procuram avidamente outro a quem passar o título de vez. Já não é a primeira vez que me aconteceu ser brindado com um número bem mais próximo que aquele a que teria acesso caso fosse retirar o papelinho eu próprio… o que não quer dizer que eu não o faça, isto é, que não vá retirar outro papel. É que estamos a tratar aqui de uma situação delicadíssima, mais periclitante que qualquer situação do oriente médio, em que a capacidade estratégica de um jogador de xadrez é mais que necessária. Por um lado, se recusar, se deitar fora o papelucho ou se for retirar um outro em frente ao ofertante, é coisa para lhe magoar os sentimentos, assim como para lhe provocar uma raiva imensa, que o vai ficar a remoer, bem lá no fundo, até que ele consiga uma oportunidade de me atropelar. Gente que é capaz de tirar duas, três senhas é capaz de tudo! Por outro lado, aceitando a oferta, é preciso ter muito cuidado com as reacções dos outros que já lá estão à espera do chamamento. Por exemplo, quando este sucedido se sucede num hospital, as pessoas ficarão naturalmente furibundas, o que, a bem ver, aconteceria em qualquer situação; no entanto, num hospital há que relativizar a furibundice de que as pessoas são capazes. Pessoal de muletas e andarilhos e assim até pode ser perigoso se tiver boa técnica de arremesso, mas, em princípio, uma boa corridinha e escapa-se ileso desses ataques. Ora, da última vez que me sucedeu este sucedido, foi numa estação dos ctt onde, apesar de haver uma outra velhota, o pessoal era capaz de me dizimar se se apercebesse do caso. Pior, uma estação de correios coloca ao dispor de por quem lá passa toda uma panóplia de armas perigosíssimas, como, por exemplo, selos e envelopes! Centenas, milhares de selos e envelopes, que me obrigariam a lamber, até secar completamente as papilas da língua, infligindo cortes que, como é do conhecimento público, são dolorosíssimos. Pá, não estamos a falar da possível traçadela num pêlo da púbis aquando da prática de sexo oral, coisa, aliás, que faz antever pelo menos uma aprazível sensação orgásmica; estamos a falar de cortes de papel e selos na língua, das coisas mais dolorosas que a humanidade alguma vez sentiu!
Refira-se que, quando entrei na estação de correios propriamente dita, já ia munido da dita senha, mas, mesmo assim, decidi não arriscar, porque apesar de tudo havia por lá alguém com a senha logo a seguir àquela que me fora oferecida, e que poderia ser menino para armar um escabeche mais ou menos! Agora que penso, se calhar o tipo que me passou a senha era um agente de uma funerária, se calhar todas estas pessoas que fazem esta coisa de passar senhas indevidamente são agentes de funerárias que promovem confusões, na esperança de alargar o mercado. É que tudo foi muito estranho… ok, eu estava com um envelope tamanho monstro, daqueles almofadados e tudo, com quase dois quilogramas de papelada lá dentro para despachar (esse verbo clássico da correspondência postal), pelo que o ah, vai para os correios? faz todo o sentido; o que já não faz sentido nenhum é que no verso da senha estivesse um número de telemóvel… a não ser que a ideia fosse que, no fim da pancadaria, alguém, se calhar combinado com o outro tipo, dissesse olha, um número de telefone, vamos ligar… e saía uma agência funerária. E a forma como ele me despachou o papel para a mão, aquela passagem como quem troca uma nota por uma dose de estupefacientes, dizendo é o 29, o 29!, como quem diz vais levar com o caixão 29 que é um mimo! Uma máfia, com certeza, uma máfia instalada mesmo debaixo dos nossos narizes, e nem demos por ela, pelo menos até este meu momento epifânico, uma máfia especializada em distribuição de senhas para atendimento ao público, contratada pelas agências funerárias, de modo a criar confusões, mortos e assim, e ninguém faz nada. O que vale, a mim não me apanham, que eu sempre retirei outro papel, e a partir de agora não caio outra vez nessa, usarei sempre esse outro. Uma máfia de dealers de senhas, quem diria?

Bem, é sabido que o tuga tem uma propensão para ser distribuidor dissimulado de tudo e mais alguma coisa, diria mesmo que por cá se desenvolveu toda uma arte de fazer passar coisas não ilegais para outras pessoas, sendo, obviamente, as velhas tias e avós o expoente máximo dessa habilidade. A forma como elas encapotam notas para no-las passarem rapidamente, acompanhadas de um toma lá, toma lá, para ires tomar um café, ou silenciosamente, quando no-las colocam nos bolsos, o que pode ser uma chatice, que a gente às vezes manda a roupa lavar, quando tem assim mais de quatro nódoas de ketchup, e depois vem a nota desfeita, ou pelo menos diminuída, não no seu valor, mas no tamanho, que eu já vi uma nota de cinco euros depois de ir a um programa de lavagem completo e perdeu uns bons milímetros. Mais ou menos como os órgãos sexuais masculinos depois de saírem das gélidas águas marinhas, diminuídos no tamanho momentâneo, mas com o mesmo presumível poder de compra. Uma questão de inflação aparente, no fundo.

Plim… 0245. Alto!, é a minha vez… Odeio esperar…

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