Breves nótulas sobre uma verborreia insone #5

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(palavras incoerentes escritas a cor azul no verso de uma folha em branco)

“A democracia é um péssimo sistema político, mas é o menos mau até hoje inventado!” – para lá de ser conhecido pelo hábito de fumar charuto, mesmo sem o humedecer previamente num certo e determinado local, como um outro conhecido político; por saudar as multidões com o símbolo do V de Vitória feito com o dedo indicador e médio da mão direita, símbolo esse, aliás, ligado à maçonaria de que fazia parte; por ter ganho um Prémio Nobel da Literatura apesar de só ter realizado algumas aventuras poéticas de mediana qualidade, e aqui sigo o que dizem os entendidos, pois não posso afirmar nada sobre algo que nunca li; por ter sido o primeiro-ministro do Reino Unido durante a IIª Guerra Mundial e ter tido um papel determinante na oposição ao avanço das forças do Eixo, em particular da Alemanha nazi de Hitler; Winston Churchill é também conhecido por ser o rei do discurso e do aforismo, pelo menos no que ao século XX diz respeito, título esse, no que toca ao aforismo, disputado, quanto muito, por Albert Einstein e Henry Ford. São famosos os seus discursos durante o já referido confronto bélico, encorajando quer militares quer civis para a resistência e para a dura e penosa refrega; mas também as pequenas frases e expressões com que resumia toda uma ideia, de forma simples e bela. Quantas vezes não falamos, por exemplo, em “cortina de ferro”, esquecendo-nos que é este o autor da expressão acerca da construção do bloco soviético, e o seu enclausuramento sobre si mesmo, e não apenas sobre a construção física do muro de Berlim. Churchill era conhecido por tudo isso e muito mais, mas convém não aceitar as suas frases como verdades absolutas, sob pena de permanecermos na obtusidade linear do seguidismo unanimista, quais escolásticos alimentando-se do magister dix it dos Aquinos e Agostinhos e Aristóteles. Crédito seja dado a Churchill por concluir que a democracia é um péssimo sistema político, mas é preciso compará-la com outros, para perceber se é, de facto, o melhor, ou aliás, o menos mau de todos.

Antes de avançarmos, porém, uma pergunta exige resposta, ainda que rápida, pois sem ela muito do que se vai tratar ficaria menos compreensível: O que é o poder? Neste caso, O que é o poder político? De acordo com a visão tripartida do poder teorizada na sua forma mais célebre por Montesquieu, este divide-se em três ramos principais, essa espécie de número mágico no tocante à organização de qualquer sistema racional na história da humanidade, a relembrar: o legislativo, o executivo, o judicial, ou seja, o elaborar leis ou normas, o colocá-las em prática, o julgar e punir quem não as cumpra. Ao longo do tempo, é de referir também, foram mais os séculos e as civilizações em que esses três poderes estiveram sob a alçada da mesma “mão” que aqueles em que se encontraram separados, como preconizou o teorizador francês. Assim, o poder político não é mais que o poder de ordenar uma sociedade, criar um paradigma normativo, e punitivo, para regular e controlar o seu funcionamento com o máximo de harmonia e o mínimo de entropia possível.
Nestes parágrafos que se seguem, falaremos, quase sempre erroneamente, sobre três tipos, para não fugir à regra, de sistemas políticos, não os agrupando segundo os conteúdos desses paradigmas, ou seja, qualitativamente, mas antes segundo o número daqueles que detêm poder, ou seja, quantitativamente. Assim, partiremos do extremo do “poder de todos” para o seu oposto, o “poder de um só”, acabando no intermédio, e com imensa confusão pelo meio. Adiante…

Vamos, então, à denominada democracia, esse sistema político cujo étimo revela a origem grega de ser o povo (demos) que detém o poder (kratos), surgido na Antiguidade Clássica, fruto de uma evolução secular nas esferas do poder das cidades-estado gregas, particularmente a ateniense, e que permaneceu adormecido nos subconscientes dos demos europeus por muitos séculos. Temos, desde já, que distinguir as duas versões assim baptizadas: a democracia directa, ou ateniense, e a democracia representativa, ou moderna, aquela a que se refere Churchill.
Muitos criticam duramente o sistema ateniense por ser exclusivista, segregador. Primeiro, por excluir as mulheres. Segundo, por permitir a escravatura. Terceiro, por não permitir a naturalização dos estrangeiros. Por fim, somando os números da população ateniense chegam à conclusão que o grupo dos cidadãos, os homens livres que restavam depois de excluídos todos os outros habitantes da pólis, era uma larga minoria. Certo, aceitamos que, na Atenas clássica, as mulheres não tinham poder nem independência, havia escravatura, que os estrangeiros eram membros menores da população e que os cidadãos eram uma minoria, só não aceitamos que se deitem as culpas para o coitado do sistema político democrático, que não a tem! O que está aqui em causa é uma concepção de sistema social, uma visão da sociedade e de seus elementos, os valores sobre os quais ela assentava. Para os gregos não havia descriminação sexual porque a mulher era vista como um ser naturalmente inferior (lembremo-nos de Aristóteles, por muitos séculos O Mestre das coisas filosóficas nas universidades europeias, que tinha dúvidas acerca da categoria a que pertencia a mulher, se à dos animais, se a uma à parte, entre aqueles e o homem). Da mesma forma, a escravatura era uma coisa natural e evidente, necessária mesmo, e os estrangeiros não eram vistos senão como gente sem direito a decidir. No fundo, o povo, o demos, era constituído apenas e só pelos homens cidadãos, eram sinónimos as duas coisas, por isso se chamou democrático ao seu sistema. O poder do povo = O poder dos cidadãos = O poder dos homens atenienses livres. Convém ainda dizermos que qualquer tentativa de criticar a democracia, ou mesmo a sociedade, ateniense segundo estes parâmetros atrás mencionados é, para nós, um anacronismo mental, pois deriva da transposição da cultura e da mentalidade actuais para uma outra época onde ela não existia de todo!
De qualquer modo, o grupo dos cidadãos era, de facto, pequeno em termos absolutos, pelo que o seu sistema acabou por funcionar, também por ser bem arquitectado. Cargos rotativos, limite de mandatos, voto directo em todas as leis apresentadas. Tudo coisas que são inegavelmente positivas, algumas das quais ainda hoje se luta por implementar. Da mesma forma, porém, os defeitos surgem-nos actuais: a corrupção e o viciamento das eleições, o usufruto do poder para proveito próprio (dizem que se chama cleptocracia), o absentismo do corpo político… Esses eram, verdadeiramente, os problemas da democracia ateniense. Porém, a razão de tais problemas é mais ampla, mas não vamos, para já, por esse trilho.
Vamos antes ao hoje! Como funciona hoje? Chamamos de representativa à democracia actual. Mudámos, no entretanto, os nossos valores e modelos sociais: trouxemos as mulheres para o seu devido lugar, mas sem auferir exactamente os mesmos ordenados, obviamente; deixámos de lado os escravos, porque é muito melhor substituí-los por assalariados livres e miseráveis; permitimos aos estrangeiros a sua naturalização e o respectivo acesso à cidadania, embora ainda haja quem veja esse assunto como algo a tratar caso a caso, conformemente (é, provavelmente, a primeira vez que utilizamos esta palavra na vida) aos seus interesses. Eliminámos, portanto, o que seriam os defeitos do sistema social ateniense. E quanto ao sistema político propriamente dito? Bem, os cidadãos não têm direito senão a mais ou menos um voto por ano, para escolherem então quem os represente nos cargos públicos, o que não foge ao que os atenienses criaram, mas todas as posteriores decisões estão para lá do seu poder efectivo, muitas vezes do seu entendimento, e são tomadas pelos elementos desse grupo de representantes que, vamos lá ver, ocupa de facto os cargos rotativamente entre si, às vezes sem limites de mandatos, e sem prestar grandes contas a ninguém. Certo que o modelo de voto directo é impraticável em grupos que não sejam pequenos, mas a falta de responsabilização da chamada classe política é confrangedora. Mais parece que, hoje em dia, essa classe forma o que outrora foi o grupo dos cidadãos atenienses, os verdadeiros e únicos detentores de poder efectivo, que apenas precisam de confirmação periódica com uma cruz de róbora num papel em branco onde possam desenhar livremente. Quanto ao resto, tudo na mesma, cá estão a corrupção, o absentismo, o amiguismo, o nepotismo, as clientelas de beija-cus e bons rapazes. Mas, vá lá, estamos em democracia, e isso ainda quer dizer que o povo tem o poder, certo?!
Pronto, está feito o esboço dos sistemas em que o povo detém o poder… Erro! Falta um outro, pelo menos, visto que na confusão fabril dos pensamentos muitas coisas se nos escapam, que é, na sua simplicidade teórica máxima, despido de tudo o mais, um sistema de poder em que este é exercido pelo povo, na acepção de toda a população (claro está que para estas contas nunca se incluem os que ainda estão na menoridade, o que parece óbvio). Como dissemos logo no início, o que nos interessa não são os nomes dos bois, nem o modo como estes tratam as vacas, mas sim quantos bois são, afinal…
E o seu nome é… comunismo! (Podem começar a apupar os que quiserem, decerto que já o fizeram anteriormente os mesmos ou outros)
Para os que já se estão a levantar da cadeira, uma ressalva apenas: vamo-nos ficar pelo nível teórico, absolutamente teórico…
O comunismo é, de facto, uma ideologia política, mas não só. É também uma visão social, como todas as ideologias políticas, no fundo. É como na literatura, em que não existe só a experiência de escrever um livro, mas também a de o ler. Ambas são literatura, na verdade, e ambas são importantes, ambas são etapas artísticas de uma criação. No fundo, todos os actos da criação humana pressupõem, ainda que muitas vezes implicitamente, uma outra face. Assim, tal como falham muitas obras por lhes faltar leitores ou a compreensão neles, também certas ideologias falham por lhes falhar a sociedade. O comunismo é, assim, uma teoria que pressupõe uma metamorfose social e ética, uma mudança radical nos valores humanos, nas sociedades humanas, e esse será, por ventura, o seu elo fraco, mas já lá iremos.
Ghandi disse, certa vez, que “é fácil falar sobre religião ou política quando se teve um bom almoço e se tem a perspectiva de um jantar ainda melhor, mas para os que são miseráveis e nada têm Deus só pode aparecer na forma de pão e manteiga.” Frase de uma simplicidade quase ingénua, aparentemente ingénua, e simultaneamente tão bela e acertada. Os sonhos do Homem são sempre inversamente proporcionais em relação àquilo que o faz sofrer!
Os ideólogos do comunismo, embora não sofressem na pele os males do seu tempo, foram filhos de um casal revolucionário, o pai insalubre de seu nome Revolução Industrial, e a mãe idealista também conhecida por Revolução Francesa. Sendo o século XIX uma época ainda marcada pela supremacia patriarcal, é normal que tenham sido deveras afectados pela autoridade vil e brutal de seu pai, pelos sintomas da sua doença: homens que vilipendiam homens na sua dignidade, deixando-os cair em sarjetas de miséria, a exploração homófaga das pessoas bestializadas… Podemos, claro está, ressalvar que desde há milénios homens eram subjugados por outros da mesma espécie, escravizados desde as primeiras civilizações… Mas o mundo pós revolução industrial tinha um extra: a sujidade cinza de fuligem dos fornos em que ardiam o carvão e derretiam os metais, mas também os corações cada vez mais angustiados. E, todos o sabemos, só há um lugar onde procurar conforto nos momentos de maior angústia, o colo materno, o calor e afago dos ideais de liberdade, igualdade e fraternidade, enfim a justiça na terra, trazidas pela mamã francesa em pontuais exemplos práticos. Não admira, portanto, que a ideologia comunista esteja assente num sistema social igualitário, em que todos trabalham para o bem comum, sem ninguém deter capital, essa fonte de poder sobre os outros, a não ser o capital de trabalho, individual, inalienável, usado para beneficio de todos por igual e não explorado por ninguém. Todos esses trabalhadores, a massa de proletários, a população no seu todo, deteriam um poder efectivo, ao votar directamente na tomada de decisões, elegendo posteriormente os representantes para que indicassem em cada vez maiores assembleias o sentido do seu voto maioritário, e não o contrário, em que se elege e os representantes decidem. No fundo, é como uma síntese dos modelos anteriores: a democracia directa como sendo a tese, a democracia representativa como sendo a antítese, conjugando o que de melhor tinham, de modo a tornar a democracia um sistema justo e, ao mesmo tempo, praticável em quantidades gigantescas de população. Algo muito ao jeito da filosofia hegeliana que Marx tanto admirava e tanto usou nas suas teorias. Claro que para apoiar esta mudança de sistema político seria necessária uma alteração dos valores sociais, e mesmo do Homem em si…
Ora, parece-nos que começa precisamente por aí a fraqueza da ideologia comunista. Talvez por ser alemão, e estar ainda demasiado perto o romantismo de Göethe, Marx deixou-se levar no encantamento de uma visão idealista, a possibilidade do Homem mudar verdadeiramente, a confiança na alteração profunda do que tem sido a mente humana desde sempre. Como já referimos, o Homem, ser gregário por natureza, é também um ser altamente competitivo, no que não foge aos restantes elementos do reino animal, pelo que há sempre quem queira ter uma certa supremacia, um ascendente de qualquer tipo, político, monetário, etc., sobre os outros. Somada esta sedução pelo poder de qualquer tipo a que o ser humano não consegue resistir por fraqueza sua (ou condicionamento biológico???) ao pressuposto de uma fase evolutiva em que, no sentido da democracia comunista, haja um partido que tome conta do poder em nome da massa proletária, ainda que apenas de forma transitória, não podia deixar de dar no que deu! E deu, sim senhor!
Claro, podem perguntar: Mas então e o modelo anarquista, em que há ausência de partido? A questão é que, sendo um sistema político uma forma de exercer o poder numa sociedade, e sendo a anarquia uma teoria que defende não só a ausência de partido, mas também a abolição de qualquer tipo de poder, bem, não é bem um sistema político… e, sendo assim, fica fora deste arranjo cacofónico e atonal de palavras.

Como contraponto directo às visões democráticas do poder, temos as visões autocráticas, isto é, as visões de um sistema político em que o poder esteja absolutamente nas mãos de uma só pessoa, e quando referimos o poder fazemo-lo para as suas três vertentes. Assim, nas autocracias, o poder atinge o seu grau de concentração máxima, quer se trate de regimes monárquicos quer de ditatoriais. Estes são os dois casos mais relevantes e merecem alguma atenção.
Essencialmente, o que define uma monarquia é a sucessão familiar do chefe; enquanto numa ditadura essa sucessão pode, por exemplo, ser feita dentro do partido, numa ditadura partidária, ou dentro da família do dito ditador, uma ditadura de cariz monárquico, nesse caso. Porém, no que diz respeito à ideologia, uma monarquia pode ser opressora, ou não, enquanto a ditadura é sempre conotada com a restrição de liberdades, mesmo que não seja esse o seu sentido etimológico. Esta é de todas a maior questão, pois prende-se com o facto de a monarquia não ser, por si mesma, um sistema político, ou uma ideologia do mesmo, antes um regime de hierarquia política, pelo que pode assentar em ideologias diferentes, conforme o caso. Recuperando uma distinção anterior, a monarquia distingue-se, em sentido lato, dos outros tipos de modelo político apenas pela questão da quantidade dos que têm poder, não pela qualidade do poder exercido. Na verdade, o sistema político das monarquias do mundo ocidental é a democracia representativa, pelo que estas não constituem verdadeiras autocracias!
Até aqui pensamos que seja tudo consensual, ou não, portanto, lá vais mais uma bombarda: nunca houve, exceptuando talvez pequenos espaços de tempo, uma verdadeira autocracia em nenhuma civilização humana! E dizemos civilização para excluir à partida as vivências em grupos tribais, ou em estádios gregários ainda menos complexos, onde a existência de autocracias seria/é normal. E nunca houve pela mesma razão que leva a que a democracia directa seja impraticável hoje em dia: devido ao quantitativo populacional. Da mesma forma que não é possível a milhões de pessoas exercerem diariamente o seu direito ao voto sobre todas as decisões da vida pública, por causa dos limites impostos pela vida privada, também não é possível a uma só pessoa dominar por si mesma todas as esferas do poder, criar leis, executar leis, julgar infractores. Quanto muito, houve brevíssimos momentos em que tal sucedeu, mas logo as autocracias esporádicas decaíram em outros sistemas, tornaram-se burocracias, tecnocracias, ou outros… A presença do tirano todo-poderoso reinando, dominando, sobre toda uma massa obediente de súbditos não é mais que uma figura de estilo política, uma imagética criada na mentalidade humana, um faz de conta, uma fachada para dissimular um sistema em que vários detêm o poder, e levar todos os outros a seguir ordeiramente o chefe único. Sendo assim, não falaremos mais sobre autocracias.

Tendo abordado, ainda que ao de leve, o 80 e o 8, a democracia e a autocracia, o governo de todo o povo ou de apenas um elemento, resta, então, uma incursão pelos vales do governo de alguns, as oligarquias no sentido etimológico de governo (arche) de poucos (oligoi), e não no sentido actual de governo ou poder de alguns baseado nas suas posses e/ou riqueza pecuniária. Este sistema de poder político tem diversas manifestações, mesmo não sendo este o termo mais correcto, sendo as mais importantes e faladas a aristocracia (governo dos melhores), a gerontocracia (governo dos mais velhos), a tecnocracia (governos dos técnicos ou economicistas) e a burocracia (governo dos que fazem parte do aparelho de estado). Uma coisa têm todos eles em comum, os elementos dos grupos poderosos consideram-se de alguma forma superiores aos restantes, razão pela qual devem deter esse poder, seja por terem maior grandeza moral, seja por serem mais velhos e experientes, seja por dominarem as estruturas da máquina do poder ou traçarem melhores planos de enriquecimento estatal.
Sendo assim, vamos então realizar um movimento de basculação, aproveitando estas noções sobre oligarquia, uma analepse gradual, de modo a chegar a um ponto e voltar atrás, quase seguindo o mesmo percurso.
Em relação às oligarquias propriamente ditas e reconhecidas enquanto tal, elas existiram sempre e existem ainda nos nossos dias: são as tribos africanas ou americanas onde o poder dos anciãos é ainda aceite por todos os outros como normal; são as oligarquias financeiras como a russa que fazem mover as políticas do estado; são as tecnocracias como a chinesa, em que a visão economicista e técnica do poder se sobrepõe cada vez mais aos princípios do próprio partido. Talvez não sejam grupos com o mesmo encanto romântico de uma aristocracia à moda europeia, ou de um senado romano, mas existem e são inegáveis.
Voltando atrás um ponto, regressamos ao mundo das autarquias, perdão!, das autocracias que, como já vimos, se deturpam, necessariamente, em sistemas oligárquicos, quase sempre de molde aristocrata, burocrata/tecnocrata ou partidocrata (este termo é de nossa inteira e absoluta responsabilidade). Os monarcas absolutos que delegavam poder nas mãos de nobres e ministros, até se esvaziarem de poder efectivo, restando o tal poder simbólico da imagem de poder, como já referimos; os estados ditatoriais contemporâneos que funciona(va)m de igual modo, substituindo o monarca pelo ditador, os nobres pelos elementos do partido; e, no meio de tudo isto, sempre presentes, os burocratas, os desconhecidos que manobram as estruturas de poder.
E agora a democracia outra vez. Como vimos, ao promover a fase do partido, o comunismo levou a que surgissem oligarquias de molde partidário, e esse é, como já vimos, um erro primário. A democracia ateniense era, no seu tempo, um sistema em que o considerado povo detinha, de facto, o poder. A questão é que, como também sabemos, o modelo social ateniense é hoje uma relíquia do passado no mundo dito ocidental, ou ocidentalizado, para ser mais verdadeiro, pelo que, posto no mundo actual, com todas as suas preposições, seria um sistema oligárquico. E, mesmo assim, não deixaram de se formar oligarquias dentro dos cidadãos da Atenas clássica. Por fim, a democracia representativa de hoje em dia. Como já dissemos, o poder verdadeiro, no sentido que lhe atribuímos inicialmente, está, nos nossos dias, em mãos de alguns grupos antagónicos, os partidos, mas que, no seu todo, formam a dita classe política, o grupo dos que governam. Mais dissemos ao afirmar que essa classe é, hoje, o equivalente ao grupo dos cidadãos na antiga Grécia, uma minoria dentro do todo da população de onde lhe advém, de forma institucionalizada, a base sustentadora do seu poder, essas eleições que não são, dizemo-lo sem temor, nada mais que uma farsa destinada a mascarar a verdade que é: a democracia actual não mudou nada em relação à ateniense, apenas se fingiu de ovelha.
Por tudo isto, afirmamos também, é errado dizer-se que haja sistemas políticos que não sejam, pelo menos segundo os nossos valores sociais actuais, isto é, numa sociedade igualitária, que não sejam, repetimos, oligárquicos!

Até aqui escrevemos factos, todos eles manipulados e alguns mesmo inventados para nos darem razão, e escrevemos opiniões, todas elas sem fundamento, pelo que voltamos ao mote inicial que nos trouxe por este super tortuoso caminho e prosseguiremos depois apenas com mais e mais opiniões. “A democracia é um péssimo sistema político, mas é o menos mau até hoje inventado!”, disse Churchill. Nós dizemos que a democracia é um péssimo sistema político quando se tenta impô-lo, quando é implementado a martelo, sem ser pedido por ninguém. Convençamo-nos que uma sociedade habituada à estratificação, à obediência milenar à figura do líder, como, por exemplo, a chinesa, não é campo fértil onde cresçam as roseiras cravadas de espinhos da democracia. E mesmo que fossem suaves cravos! Uma sociedade onde os valores religiosos se sobreponham a todos os outros só pode ser igualitária e ter um sistema político democrático se houver concordância entre esses valores e as ideias de democracia. Não vale a pena tentar transformar o Médio Oriente, mais as suas teocracias islâmicas e a sua sociedade patriarcal, num oásis democrático se a sociedade não está receptiva. Impor a democracia à força é absolutamente contrário aos valores democráticos! A democracia é apenas um razoável sistema para a sociedade ocidentalizada, que se rege por princípios de igualdade de acesso a todas as oportunidades, incluindo a oportunidade e oportunismo do poder político. Uma sociedade que não se importa de viver no conforto dessa ideia ilusória de poder de todos e para todos, porque lhe sabe bem viver assim e tudo funciona tranquilamente. A democracia é apenas mais uma forma de alguns mandarem em todos, a forma ocidental de o fazer.
Por isso, a democracia não é melhor nem pior que os outros sistemas, que todas as outras oligarquias, por si mesma. Democracia não é melhor que gerontocracia! Apenas é mais adequada à nossa sociedade, e parece ter resultados mais positivos em termos de funcionamento, pacifismo interno, enriquecimento… Mas se certas mentalidades assumem a riqueza como um bem desnecessário!!! Outras sociedades, com outras formas de pensar, adoptaram sistemas diversos, e não deixaram, mesmo assim, de prosperar! Mesmo que o mundo ocidental possa exercer uma atracção em relação aos resto do mundo, pela sua aura de prosperidade, ela [a democracia] não surgirá nesses locais sem que a sociedade mude previamente, se torne semelhante à nossa, pense como a nossa, e isso depende apenas deles, não de nós! Não vale a pena interrogar Ó democracia, onde estás, quem te demora, e não ter uma base social onde repouse depois de chegar!
Por fim, queremos concluir ainda que não há sistemas perfeitos, porque todos os sistemas, de qualquer ramo do conhecimento, são imperfeitos, sofrem de entropias! E, para além disso, somos humanos, o que já é imperfeição que chegue!
Achamos que já chega de inventar noções disparatadas e é tempo de assentar neurónios no conforto do leito, enquanto ouvimos, oh, coincidência!, o Palma a cantar… “Celebrou-se a liberdade/ A igualdade e a fraternidade que acabavam de nascer/ Mas ao chegar a vez de cada um/ Trabalhar para o bem comum/ Aí começaram os dissabores/ E em vez de ficarem unidos/ Dividiram-se em mil partidos/ Lá no fundo, todos queriam ser…/ Ditadores!”

FIM
(ah, se eu mandasse!)

Breves nótulas sobre uma verborreia insone #4

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(palavras incoerentes escritas a cor azul no verso de uma folha em branco)

“Só merece a liberdade e a vida quem diariamente tem que a conquistar” – depois de temas como vida/morte, beleza/monstruosidade, deuses/sonhos, todos eles feitos de parelhas, dicotómicas umas, sinónimas outras, a confusão senil do meio sono trouxe-me à mente esta frase do expoente máximo do romantismo de tipo alemão, um tal de Göethe, dizem, ou seja, veio à baila o tema político. Pelo menos é que parece numa primeira leitura, pois se trata de conquista, de luta pela liberdade e pela vida, como uma frase que resuma em si o fim último do espírito revolucionário, conquistar os direitos que aos homens todos por igual devem ser reconhecidos. Mas não apeteceu aos neurónios, ou à massa encefálica, ou lá ao que seja responsável pelos pensamentos, andar a transbordar verbos, substantivos, pronomes e o resto da gramática toda ela sobre essa coisa de liberdade, nem de igualdade, nem de fraternidade, pai, filho e espírito santo da nouvelle santíssima trindade revolucionária francesa. E decaem os pensamentos, como os átomos mais os seus isótopos radioactivos, em outras questões que possam estar mais além, no âmbito estritamente pessoal e íntimo de cada ser humano.
Disse António Lobo Antunes, autor que aprecio, mesmo que esteja ainda começando a desbravar a floresta negra de caracteres da sua escrita, que, após o 25 de Abril, sentiu dificuldades em viver em liberdade com a então sua esposa, razão pela qual se divorciou. Isto poderia causar espanto pois, atingida a tão almejada liberdade, sacudido o jugo do Estado Novo, teoricamente o povo português pôde passar a actuar sem estar preocupado com normas e restrições ditatoriais emanadas de outrem, e isso não parece ter nada a ver com as questões matrimoniais. Porém, o próprio afirmou que o problema é que lhe faltava o haver essas mesmas normas e restrições, como se até àquele momento todas as relações de definissem, fossem de que tipo fossem e incluindo a mencionada, pelo ambiente sociológico e político do país, sem o qual desabavam quais castelos de cartas assentes numa mesa coxa, periclitantes até à derrocada final, como se fossem teorias assentes num não mais existente paradigma, à espera de um novo para evoluírem, ou, neste caso, se extinguirem. E concluiu, numa estocada final, touché, que isso de liberdade é o “ser-se livre dentro de uma prisão que nós próprios construímos!”
Esta frase bateu-me na cabeça que nem um tijolo caído de uma grua e fez-me pensar, mais que a própria frase de Göethe que já vai lá para trás. No fundo, está em causa o haver liberdade plena, pois, segundo esta perspectiva, ela realmente nunca existe verdadeiramente. O que há são limites, esferas de liberdade, mais ou menos apertados, conforme a prisão que, não o Estado, ou outra entidade exterior qualquer, produza, mas, nós mesmos construamos em nosso redor, como um muro para nos proteger de algo. Se há coisas que todos podemos fazer, respeitando as leis, mas apenas alguns o fazem, então é porque a grande maioria se censura a si mesma, se auto-impõe um limite e uma restrição à sua vontade, ao seu desejo, quiçá ao seu instinto.
Pensei, então, no caso de alguém que viva desde muito tenra idade num pleno e absoluto isolamento em relação a qualquer companhia ou interferência humana, sem nunca ter sido condicionado por normas parentais, sociais, religiosas, estatais ou de outra origem qualquer. Tal pessoa poderia, abrigado do lápis censor, fazer tudo o que lhe aprouvesse, até mesmo entrar pelo campo do que se chamaria, na nossa liberdade democrática com 32 anos, libertinagem. Mas eis que uma outra questão surge, premente: sem contacto com outros seres da sua espécie, tal humano ficaria restrito, obviamente, à luta pela sobrevivência diária, e nada mais; e isso não lhe seria uma restrição, nem um motivo de insatisfação (a não ser, pensei com gracejo, a impossibilidade do coito, mas adiante), pois sem a possibilidade, ou melhor, sem o reconhecimento da possibilidade de algo mais que sobreviver, tal não é desejado, logo restariam, apenas, os limites ditados pelo instinto, por esse mesmo instinto de sobrevivência, quadro normativo último de toda a acção humana. Como quem diz que o ser humano não deixa a si mesmo transpor o limiar da sobrevivência. E, no entanto, uns morrem de fome e outros atiram balas directamente nos seus corações, e todos eles vivem em sociedade...

FIM
(o meio sono tem destas coisas, esta confusão nas palavras)

Breves nótulas sobre uma verborreia insone #3

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(palavras incoerentes escritas a cor azul no verso de uma folha em branco)

“Os sonhos são como os deuses; se não se acredita neles, eles deixam de existir.” - entre dois discursos inflamados perante o Senado, um tratado de gramática ou retórica, e, quiçá, uma fuga para o Egipto, Cícero, grandiloquente cidadão da República Romana, deixou-nos esta peça de artilharia virada contra a nossa cabeça, pronta a despedaçá-la em estilhaços disformes de angústia e insónia. Os sonhos, os sonhos...
O que são os sonhos? Essas partículas subatómicas da nossa mente, quarks vagabundeando pelas areias movediças do subconsciente, peça de teatro com as cortinas das pálpebras encerradas, onde representamos para nós mesmos as nossas ambições, os nossos medos, as nossas angústias, encobertos por máscaras do mundo conhecido ou por conhecer! Esses depósitos de traumas e assuntos irresolutos, símbolos sexuais, para uns; mensagens enviadas directamente pelo divino, em código quase sempre, para advertir de catástrofes e tragédias pessoais ou colectivas, ou para anunciar a chegada há tanto esperada de um messias redentor, para muitos outros durante muito tempo! São esses os sonhos que vemos sem tocar durante o repouso do sono! Aliás, para os gregos antigos, Morfeu, deus dos sonhos, era filho do próprio Hipnos, o deus do sono. Mas, e apesar da relação estabelecida entre sonhos e deuses pelo próprio Cícero, serão esses meandros da mente aquilo que está em causa?
Ou não são, isso sim, aqueles sonhos que aparecem enquanto estamos despertos e perfeitamente conscientes do funcionamento dos nossos raciocínios, os nossos desejos e ambições enunciados tal e qual eles são, sem códigos malabarísticos nem nebulosas de significado, o querer algo com muita força e acreditar que, lutando por tal desiderato, ele será atingido? O acreditar ou não em desconexas reconstruções de momentos díspares no tempo e no espaço, e seus possíveis significados, não é importante, sobretudo quando comparado com a fé num objectivo claro e conciso. E só essa crença forte nos poderá levar ao sucesso.
Do mesmo modo, também os deuses, sejam eles quais e quantos forem, nas suas variadas formas e nomes e funções, um panteão inominável ou apenas um cujo nome não é pronunciável, depende a sua existência da fé que neles é depositada pelos homens. Alguém disse, penso que Dostoievsky, que “o Homem inventou Deus para não se matar”, ou seja, a necessidade de acreditar numa força metafísica, transcendente, suprahumana, que justifique a nossa presença no Universo fez-nos colocar o próprio Homem num patamar de coisa criada com um objectivo definido à partida. Podemos dizer que o Homem não suporta o vazio de significado e sentido para a vida, rejeita a existência apenas como um acontecimento biológico, orgânico, o correr das fases do nascimento, crescimento, reprodução, envelhecimento e morte.
Também Voltaire reforçou essa ideia. “Se Deus não existisse, teríamos que o inventar”, afirmou, colocando, é certo, as coisas numa perspectiva inversa. Enquanto o romancista russo afirmou que Deus É uma criação humana, o iluminado parisiense admite a sua preexistência. No entanto, ambos concordam no factor decisivo da Necessidade da sua existência (no primeiro caso, ele existe porque é necessário e, por isso, foi criado; no segundo, ele existe, mas seria criado se não existisse) para a sobrevivência do Homem. Porque, podemos dizê-lo, o haver deuses não é senão o haver objectivos e sentido para a vida, coisas sem as quais o Homem não consegue permanecer no caos universal. Porque os deuses e os objectivos e os sonhos são todos o mesmo alicerce da existência humana. “Os sonhos são como os deuses; se não se acredita neles, eles deixam de existir”, disse Cícero há mais de 2000 anos; Os sonhos são os nossos deuses; se não se acredita neles, deixamos de existir, digo eu nestes séculos do Homem sem ideais, enquanto outros pedem apenas mais um fininho e um prato de tremoços.

FIM
(desisti de conseguir concluir seja o que for)