Breves nótulas sobre uma verborreia insone #4

(palavras incoerentes escritas a cor azul no verso de uma folha em branco)

“Só merece a liberdade e a vida quem diariamente tem que a conquistar” – depois de temas como vida/morte, beleza/monstruosidade, deuses/sonhos, todos eles feitos de parelhas, dicotómicas umas, sinónimas outras, a confusão senil do meio sono trouxe-me à mente esta frase do expoente máximo do romantismo de tipo alemão, um tal de Göethe, dizem, ou seja, veio à baila o tema político. Pelo menos é que parece numa primeira leitura, pois se trata de conquista, de luta pela liberdade e pela vida, como uma frase que resuma em si o fim último do espírito revolucionário, conquistar os direitos que aos homens todos por igual devem ser reconhecidos. Mas não apeteceu aos neurónios, ou à massa encefálica, ou lá ao que seja responsável pelos pensamentos, andar a transbordar verbos, substantivos, pronomes e o resto da gramática toda ela sobre essa coisa de liberdade, nem de igualdade, nem de fraternidade, pai, filho e espírito santo da nouvelle santíssima trindade revolucionária francesa. E decaem os pensamentos, como os átomos mais os seus isótopos radioactivos, em outras questões que possam estar mais além, no âmbito estritamente pessoal e íntimo de cada ser humano.
Disse António Lobo Antunes, autor que aprecio, mesmo que esteja ainda começando a desbravar a floresta negra de caracteres da sua escrita, que, após o 25 de Abril, sentiu dificuldades em viver em liberdade com a então sua esposa, razão pela qual se divorciou. Isto poderia causar espanto pois, atingida a tão almejada liberdade, sacudido o jugo do Estado Novo, teoricamente o povo português pôde passar a actuar sem estar preocupado com normas e restrições ditatoriais emanadas de outrem, e isso não parece ter nada a ver com as questões matrimoniais. Porém, o próprio afirmou que o problema é que lhe faltava o haver essas mesmas normas e restrições, como se até àquele momento todas as relações de definissem, fossem de que tipo fossem e incluindo a mencionada, pelo ambiente sociológico e político do país, sem o qual desabavam quais castelos de cartas assentes numa mesa coxa, periclitantes até à derrocada final, como se fossem teorias assentes num não mais existente paradigma, à espera de um novo para evoluírem, ou, neste caso, se extinguirem. E concluiu, numa estocada final, touché, que isso de liberdade é o “ser-se livre dentro de uma prisão que nós próprios construímos!”
Esta frase bateu-me na cabeça que nem um tijolo caído de uma grua e fez-me pensar, mais que a própria frase de Göethe que já vai lá para trás. No fundo, está em causa o haver liberdade plena, pois, segundo esta perspectiva, ela realmente nunca existe verdadeiramente. O que há são limites, esferas de liberdade, mais ou menos apertados, conforme a prisão que, não o Estado, ou outra entidade exterior qualquer, produza, mas, nós mesmos construamos em nosso redor, como um muro para nos proteger de algo. Se há coisas que todos podemos fazer, respeitando as leis, mas apenas alguns o fazem, então é porque a grande maioria se censura a si mesma, se auto-impõe um limite e uma restrição à sua vontade, ao seu desejo, quiçá ao seu instinto.
Pensei, então, no caso de alguém que viva desde muito tenra idade num pleno e absoluto isolamento em relação a qualquer companhia ou interferência humana, sem nunca ter sido condicionado por normas parentais, sociais, religiosas, estatais ou de outra origem qualquer. Tal pessoa poderia, abrigado do lápis censor, fazer tudo o que lhe aprouvesse, até mesmo entrar pelo campo do que se chamaria, na nossa liberdade democrática com 32 anos, libertinagem. Mas eis que uma outra questão surge, premente: sem contacto com outros seres da sua espécie, tal humano ficaria restrito, obviamente, à luta pela sobrevivência diária, e nada mais; e isso não lhe seria uma restrição, nem um motivo de insatisfação (a não ser, pensei com gracejo, a impossibilidade do coito, mas adiante), pois sem a possibilidade, ou melhor, sem o reconhecimento da possibilidade de algo mais que sobreviver, tal não é desejado, logo restariam, apenas, os limites ditados pelo instinto, por esse mesmo instinto de sobrevivência, quadro normativo último de toda a acção humana. Como quem diz que o ser humano não deixa a si mesmo transpor o limiar da sobrevivência. E, no entanto, uns morrem de fome e outros atiram balas directamente nos seus corações, e todos eles vivem em sociedade...

FIM
(o meio sono tem destas coisas, esta confusão nas palavras)

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