Breves nótulas sobre uma verborreia insone #3

(palavras incoerentes escritas a cor azul no verso de uma folha em branco)

“Os sonhos são como os deuses; se não se acredita neles, eles deixam de existir.” - entre dois discursos inflamados perante o Senado, um tratado de gramática ou retórica, e, quiçá, uma fuga para o Egipto, Cícero, grandiloquente cidadão da República Romana, deixou-nos esta peça de artilharia virada contra a nossa cabeça, pronta a despedaçá-la em estilhaços disformes de angústia e insónia. Os sonhos, os sonhos...
O que são os sonhos? Essas partículas subatómicas da nossa mente, quarks vagabundeando pelas areias movediças do subconsciente, peça de teatro com as cortinas das pálpebras encerradas, onde representamos para nós mesmos as nossas ambições, os nossos medos, as nossas angústias, encobertos por máscaras do mundo conhecido ou por conhecer! Esses depósitos de traumas e assuntos irresolutos, símbolos sexuais, para uns; mensagens enviadas directamente pelo divino, em código quase sempre, para advertir de catástrofes e tragédias pessoais ou colectivas, ou para anunciar a chegada há tanto esperada de um messias redentor, para muitos outros durante muito tempo! São esses os sonhos que vemos sem tocar durante o repouso do sono! Aliás, para os gregos antigos, Morfeu, deus dos sonhos, era filho do próprio Hipnos, o deus do sono. Mas, e apesar da relação estabelecida entre sonhos e deuses pelo próprio Cícero, serão esses meandros da mente aquilo que está em causa?
Ou não são, isso sim, aqueles sonhos que aparecem enquanto estamos despertos e perfeitamente conscientes do funcionamento dos nossos raciocínios, os nossos desejos e ambições enunciados tal e qual eles são, sem códigos malabarísticos nem nebulosas de significado, o querer algo com muita força e acreditar que, lutando por tal desiderato, ele será atingido? O acreditar ou não em desconexas reconstruções de momentos díspares no tempo e no espaço, e seus possíveis significados, não é importante, sobretudo quando comparado com a fé num objectivo claro e conciso. E só essa crença forte nos poderá levar ao sucesso.
Do mesmo modo, também os deuses, sejam eles quais e quantos forem, nas suas variadas formas e nomes e funções, um panteão inominável ou apenas um cujo nome não é pronunciável, depende a sua existência da fé que neles é depositada pelos homens. Alguém disse, penso que Dostoievsky, que “o Homem inventou Deus para não se matar”, ou seja, a necessidade de acreditar numa força metafísica, transcendente, suprahumana, que justifique a nossa presença no Universo fez-nos colocar o próprio Homem num patamar de coisa criada com um objectivo definido à partida. Podemos dizer que o Homem não suporta o vazio de significado e sentido para a vida, rejeita a existência apenas como um acontecimento biológico, orgânico, o correr das fases do nascimento, crescimento, reprodução, envelhecimento e morte.
Também Voltaire reforçou essa ideia. “Se Deus não existisse, teríamos que o inventar”, afirmou, colocando, é certo, as coisas numa perspectiva inversa. Enquanto o romancista russo afirmou que Deus É uma criação humana, o iluminado parisiense admite a sua preexistência. No entanto, ambos concordam no factor decisivo da Necessidade da sua existência (no primeiro caso, ele existe porque é necessário e, por isso, foi criado; no segundo, ele existe, mas seria criado se não existisse) para a sobrevivência do Homem. Porque, podemos dizê-lo, o haver deuses não é senão o haver objectivos e sentido para a vida, coisas sem as quais o Homem não consegue permanecer no caos universal. Porque os deuses e os objectivos e os sonhos são todos o mesmo alicerce da existência humana. “Os sonhos são como os deuses; se não se acredita neles, eles deixam de existir”, disse Cícero há mais de 2000 anos; Os sonhos são os nossos deuses; se não se acredita neles, deixamos de existir, digo eu nestes séculos do Homem sem ideais, enquanto outros pedem apenas mais um fininho e um prato de tremoços.

FIM
(desisti de conseguir concluir seja o que for)

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