Da fauna tuga... #4

Entrar num restaurante português, num pequeno café que sirva refeições económicas, numa casa de pasto, enfim, é um exercício sublime para quem apreciar a contemplação dessa espécie tão única que é o tuga! E digo tuga, que não portugueses, que desses há muitos, há mais, são todos os que estão condicionados por nascença a uma mesma pertença geográfica a que se chamou Portugal, ao passo que o ser tuga é uma coisa de carácter, de cultura! Da mesma forma, digo restaurante português, nada dessas modernices de gastronomias alternativas, venham elas aqui do lado, ou da Malásia, sejam elas tradicionais dos seus bairros ou nouvelles formas de apresentar três ervilhitas e meia rodela de pipino num prato; da mesma forma, nada dessa comida rápida, se bem que nunca vi um hamburguer a correr, verdade seja dita.
Logo à partida, muito se pode aprender nesses locais sobre a alimentação do tuga, espécie de apetite sobredimensionado, alarve na quantidade de comida que ingere a cada refeição, de preferência regando tudo com uma qualquer bebida alcoólica, vinho e/ou cerveja à cabeça, e dando extrema primazia a tudo o que seja carnes. Se misturadas aparentemente sem coerência e envoltas numa espécie de molho opaco, tanto melhor! O que interessa é que o bandulho (vocábulo reconhecido internacionalmente como sinónimo de papo, bucho, estômago), saia bem preenchido, a dar sinais de ruptura evidente, mesmo de quase regurgitamento, o dito estar afrontado! Claro, onde muitos estrangeiros sem olho para isto, ou os modernistas sem amor pela tradição pátria, veriam um excesso louco, um exagero injustificado, uma pessoa com olhos de ver as coisas a modinhos verá apenas o resultado da evolução. Da mesma forma que os gatos vadios acolhidos por alguém têm tendência a comer como se fosse sempre a sua última refeição, assim o tuga come para satisfazer séculos de mal-passar, de fome, de falta de comida na mesa, para afastar pela sensação de enfartamento os fantasmas do passado sofrido.
Nesses tascos percebe-se ainda como o tuga é naturalmente dotado de um sentimento anti-democrático. Basta ver como na maioria desses estabelecimentos não há essa coisa da ementa! Listas dos pratos que o cliente pode pedir? Qual quê?! Ou come prato do dia, ou se quiser escolher uma dessas coisas mais elaboradas, bem pode ir comendo pãezinhos com manteiga, que vai para cima de uma hora a esperar! Não quer? Não coma! Olha-me este! É que é mesmo assim, no tasco quem manda é o tipo que cozinha, não é o cliente! Vivemos num país repleto de nichos de despotismo, ditaduras gastronómicas apenas por 5 euros, com sopa, bebida e café incluídos. Claro, serve isto também para aferir dessa outra característica tuga, que marca a espécie há coisa de quase seiscentos anos, e que é o sentido aventureiro de partir por mares nunca antes navegados de chouriços e tripas encharcados de molhos assassinos da flora estomacal e intestinal, ou outra coisa qualquer, que o Prato do Dia é isso mesmo, uma coisa que existe por si só, que não tem mais definição. Ele é o que é, e a mais não é obrigado, até porque nunca ninguém sabe ao certo o que ele possa ser.
Por fim, esses monumentos ao lirismo, esses monumentos à estatuária, esses monumentos a toda a arte tuga que são os avisos descontraídos e sérios simultaneamente, precavendo os que gostam de pedir fiado que disso a casa não gasta! Quantas rimas ABAB em quadras azuis no fundo branco de azulejos, quantos zés povinhos de manguitos dinâmicos, quais estátuas barrocas da Basílica de S. Pedro, quantas e quantas mensagens claras de dinheiro na hora, ou vamos ter problemas! Claro, não é de admirar. O tuga foi fadado com a capacidade de profetizar problemas. Olhe-se o Velho do Restelo, essa personagem mítica, que, poderemos dizê-lo, vive um pouco dentro de cada verdadeiro tuga, e que bem avisou el-Rei que nada de bom viria daquelas aventuras. O próprio Egas Moniz se deve ter virado para o pequeno Afonso, quando ele começou com aquelas tangas de que Esta merda vai ser toda minha, um dia! E o Alentejo há-de ser nosso [da Cristandade] outra vez!, e dito: Ouça, menino Afonso, olhe que isso ainda vai dar chatice! E a sua mãe, sabe perfeitamente, detesta que o menino saia de casa e vá para muito longe! E deu chatice, pois claro. O tuga é um profeta, da desgraça, quase sempre, mas um profeta!
E come que se farta!

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